No Mocotó |
‘Neide, onde você está? Quero te ver só para um abraço e um beijo, minha orfãzinha de mãe, não é assim que você está se sentindo? Agora a mãe é só você, e ela vai aparecer nas suas mãos, no seu olhar, no jeito de ser, de rir, de não comer galinha com nome. O que mata um pouco a saudade é que a gente vai se transformado nelas, mesmo sem querer. E todas aquelas coisas que nos chateavam se tornam um sorriso de amor na nossa boca. Neide, Neidinha, que todas as qualidades dela se grudem em você, e que aceite a morte dela como se aceita a vida. É assim mesmo, não tem saída, não tem jeito.
Olga, sempre quis te conhecer pela sabedoria inata. Esconder os livros da Neide para ela sossegar o pito e não ler todos de uma vez. Fazer ela voltar para o açougue com os miúdos, tão esperta que ela se acha! Saber fazer umas misturas que ela repete hoje. Fazer dela a vencedora que é. Ela vai se lembrar disso todo dia, Olga, você fez um bom serviço com essa sua filha, por mais chata que ela tenha sido de vez em quando. E a mão para jardins floridos? Acho que era sua. Ou não. Não importa, se a Neide se parece um tostão com você, já está de bom tamanho. Prometo tomar um pouco de conta dela, se precisar, fazer de mãe postiça. Até hoje foi ela que tomou conta de mim, mas vou fazer uma forcinha. Um último beijo, um dia a gente se encontra para fofocar sobre ela.’
Nina tinha destas gentilezas como estas lindas palavras que recebi quando perdi minha mãe e as dedico agora aos seus filhos Dulce, Sylvio e Octávio. Suas mensagens dariam mais um livro, pois não desgrudava da poesia nem nos e-mails mais prosaicos, fossem para mim ou para qualquer leitor ou leitora que a procurasse. Aliás, começamos a nos falar assim, virtualmente.
Minha mãe Olga se foi, minha mãe postiça se despediu no domingo. Agora somos tantos órfãos. Sentirei tanto sua falta. Quem escreve hoje sobre comida não me deixa mentir - no fundo ou no raso do pensamento, todos nós sonhamos um dia escrever como Nina Horta. Mas para transformar qualquer tema, dos mais nobres aos mais insossos em pratos honestos, coloridos, bem temperados, dourados, cheirosos e que despertam um apetite afetivo pelas emoções escondidas, ah, isto não é pra qualquer mortal . Nina era única e temos que nos contentar em reconhecer o tanto que aprendemos com ela e agradecer pelo tanto que nos inspirou e continuará inspirando.
Comecei a gostar de escrever mesmo principalmente depois de conhecê-la pessoalmente. Antes, eu escrevia para uma revista textos mais enciclopédicos por obrigação. Era uma admiradora como tanta gente, que se emocionava com sua escrita, recebia as novidades e saía procurando karipata por Alto de Pinheiros só porque Nina disse em sua crônica que havia um pé do tempero indiano em sua calçada. Por um golpe de sorte, começamos a trocar e-mails depois de nos conhecermos pessoalmente no Boa Mesa, encontro de gastronomia organizado por Josimar Mello e Sofia Carvalhosa, entre 1996 e 1997. Só sei que nos encontrávamos na plateia assistindo às aulas shows de grandes chefs e depois tínhamos assunto pra semanas.
Um dia, acho que cansada de ler e-mails longos, se bem que os delas também eram, sempre tão gostosos de ler e motivadores de respostas maiores, me provocou: por que não começa um blog? Não, imagina, que isso, respondi. Mas fiquei matutando e um dia, em 2006, comecei timidamente o Come-se. Pouco tempo depois fico sabendo, pelo expressivo aumento de leitores de uma hora pra outra, que Nina falou dele em sua coluna, que sempre repercutia tanto. A partir daquele dia muita coisa mudou e é por isto que digo que Nina fez toda a diferença na minha vida. Felizmente pude agradecê-la inúmeras vezes, afinal não teria sido convidada a participar do Paladar Cozinha do Brasil nem a escrever a coluna no Paladar não fosse pela visibilidade que o blog alcançou graças a ela. Minha grande amiga e vizinha de parede hoje chegou até mim pelas mãos da Nina - a jornalista Janaína Fidalgo era a editora de seus textos na época e ficou curiosa quando leu sobre o blog. Ganhar amigos eternos não é pouca coisa na trajetória de uma pessoa, pois tudo muda.
Em 2009 Nina me convidou para, junto com Luiz Horta, amigo e colunista de vinho, ajudá-la a escrever o livro Vamos Comer, publicado pelo MEC e distribuído nas escolas. Foram dias lindos de conversas intermináveis sobre sua experiência com merendeiras - muitos destes diálogos estão presentes no livro, que sempre carrego comigo quando dou oficinas para cozinheiros escolares Brasil afora. Merendeiras e merendeiros se emocionam com a leitura de um de seus tantos textos emocionantes sobre estes profissionais.
Com o tempo só fui confirmando que não havia pra ela assunto bom ou ruim no reino da comida. Tudo virava boa prosa. Muitas vezes ela escrevia sua coluna no domingo à noite pra entregar na segunda de manhã sua coluna. Mas quem disse que ela deixava tudo pra última hora e só gastava aquele tempo do registro? Era uma semana matutando, estudando livros, conversando com os amigos a respeito, não só pra evitar falar besteira, mas porque era curiosa mesmo. Quando se punha a escrever sobre algo que não lhe dizia respeito, dava voz à fonte, colocava graça na fala, nos contaminava de interesse e logo já estávamos íntimos dos gongos do coco babaçu, do mangarito, do huitlacoche e de tanto assunto que nos tirava da ignorância.
Na verdade, ela podia escrever sobre o que quisesse, de entomologia e botânica à tecnologia ou moda, com bastante desenvoltura e precisão desde que lhe dessem um tempinho para conferir os livros que, em sua casa, apoiavam-se até nas escadas. Se não tinha o livro, tratava de comprar e lia tudo. Devia ser a melhor cliente da Amazon – aproveitava pra comprar também bolsas, pulseiras e tigelinhas francesas, que colecionava. Lia rápido, muitos livros ao mesmo tempo, em muitos idiomas ao mesmo tempo, e às vezes assistindo à televisão, respondendo e-mail e conversando ao mesmo tempo – esta capacidade invejável cheguei a presenciar uma vez quando dormimos no mesmo quarto, junto com sua nora Chang, numa pousada em Paraty durante a Flip, antes de ler a crônica da semana seguinte com descrição, análise, síntese, graça, tudo lá.
Mas que ninguém viesse lhe ditar o que tinha que fazer. Ela sabia reverenciar uma boa comida e uma boa bebida sem nunca abandonar a irreverência. Uma vez abriu um Vega Sicília 2001 porque era o vinho que tinha para acompanhar uma simples pizza de abobrinha que havia pedido por telefone – e não é que harmonizou? Outra vez, fomos jantar no Fasano e o barmen, julgando-a pelos seus cabelos brancos elegantemente presos em coque, perguntou se queria um coquetel de frutas levinho, ao que respondeu de pronto: um uísque sem gelo, por favor. Sempre aberta a experiências antropológicas, certo dia quis experimentar testículo de galo. E lá fomos nós sozinhas a um boteco na Lapa numa tarde quente comer o petisco acompanhado de cerveja barata bem gelada. Sentia-se em casa em qualquer ambiente. No universo da comida, de quem cozinha e de quem come, tudo a interessava sem distinção alguma.
Acho que o que me levou a virar fã da escritora, desde o começo de suas crônicas na Folha de São Paulo, foi a colocação da comida num lugar de dádiva destinada a todos igualmente, sem arrogância, sem afetação, sem preconceito. Nina tinha o treino de observadora de comportamentos, falas e costumes, talento concedido a grandes escritores, como um Guimarães Rosa, que não surgem a todo o tempo. A gente não a via com caderninho na mão anotando tudo, mas conseguia guardar tudo com uma memória impressionante. Ia burilando na cabeça, juntando peças, adicionando outras, separando em conjunto. Por fim, paria aquele texto cativante, cheio de informação e reflexão com leveza, ritmo, bom humor e às vezes até com sarcasmo, sem perder nunca a delicadeza.
E quanto tinha de falar o que pensava, com críticas, ironias e verdades cruas, não fazia concessões, mas trazia junto a graça que nos levava a rir e aceitar sair do lugar de conforto. Aprecia melhor seus textos quem tem a capacidade de respeitar as diferenças com bom humor. Mesmo trabalhando com plantas silvestres e forrageios, e ela brincava dizendo que eu catava matinho na linha do trem, me divertia com sua sinceridade, como esta: “Gosto de inhame e de cará e de milho, e do trivialzinho da mesa burguesa porque foi o que minha mãe me deu. Frutas e verduras do mato, entre boas e daninhas, desconfio que se não foram descobertas até agora é porque eram meio sem graça, mesmo.”
Em outro plano, esta gente que, guardadas suas diferenças, tanto legado nos deixou e que não perdia por nada uma prosa sobre comida, Nina Horta, Toninho Mariutti, João Rural, Ocílio Ferraz, Wilma Kovesi, Dona Lucinha e nossas mães todas, cozinheiras do melhor frango ensopado do mundo, certamente continua a conversa sobre requintes e caipirices, içá e caviar. Com tanta ausência importante, temos que nos reerguer rapidamente e honrar estes nomes para que nosso mundo não fique tão chato, achatado, plano. Para curar a tristeza, um caldo de galinha gelatinoso e um purê de batata, com uma colherada de manteiga a mais e bola pra frente. Pois Ernestina que era Nina não pediu comida de alma nos seus dias de despedida porque tristeza não havia. Não quis saber de mingau, nem caldo, nem purezinho. Aceitou partir sem choramingos como era de seu feitio. Queria mesmo era mandioca frita com ketchup. E teve!
No dia em que ele me deu mais de 300 livros de sua enorme biblioteca |
Na nossa aula sobre Galinha de cabo a rabo no Paladar Cozinha do Brasil. Ana Soares, Mara Salles e eu fizemos uma homenagem - vários ovos cozidos carimbados foram carimbados com "Natureza Horta". |