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Tucupi manso. Coluna do Paladar. Edição de 05 de dezembro de 2015

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Você pode ver o passo-a-passo de como fazer o tucupi em outro post aqui no blog. Se quiser ver a coluna no jornal Estadão, é só comprar nas bancas e ir ao caderno Paladar. No blog do caderno, o texto está também publicado. 

Mas deixo aqui também:

O leite da macaxeira ou tucupi manso

Que fique bem claro, ninguém aqui está querendo mexer no tucupi dos nortistas. É perfeito do jeito que é e que continue intocável para que possamos ter saudade das tardes quentes e úmidas a tomar um cuia de tacacá nas calçadas, seja em Rio Branco ou Belém, embora aqui e ali algumas tacacazeiras adicionem à sopa pitadas de açúcar e glutamato, o que a torna enjoativa, pelo menos pra mim. 

Recentemente viajei para a Ilha do Marajó e vi no mercado tucupi branco que a vendedora disse ter sido feito com mandioca mansa. A referência que precisava. Tradicionalmente o tucupi, um caldo amarelo, aromático e ácido, de origem indígena, é feito à partir do sumo da mandioca brava ou amarga, que tem altos níveis de glicosídeos precursores de ácido cianídrico, tóxico para homens e animais. A mesma substância é encontrada nas amêndoas amargas e talvez seja este o segredo do excelente sabor do tucupi.  

Esta variedade tóxica, chamada simplesmente de mandioca, é usada principalmente para fazer farinha d´água e tucupi, pois o processamento dos dois produtos envolvem fermentação.  Já a mandioca mansa ou doce, para diferenciar da outra, recebe nomes como aipim ou macaxeira, especialmente onde as duas coexistem. Em São Paulo e Minas, por exemplo, chamamos a mansa de mandioca, já que não se planta da brava.
Claro, entre as muitas etnias indígenas e comunidades que lidam com a mandioca e seus produtos,  são cultivadas dezenas de variedades da raiz, mais úmidas ou mais secas, mole ou dura, mais amarela ou branca, venenosa ou mansa.  E cada uma tem um uso, cada qual, um nome próprio.

Mas a mandioca mansa é mais usada mesmo como mandioca de mesa. Ela cozinha melhor, se desmancha, tem sabor mais adocicado.  Embora em quantidades menores, ela também contém os tais glicosídeos cianogênicos e portanto o caldo tem sabor parecido.  Então, não tendo mandiocas bravas, façamos nosso tucupi mais mansamente, que também será bom.

O processo tradicional consiste em ralar a mandioca amarela, extrair o sumo em prensa ou tipiti, deixar sedimentar a goma, separar o líquido que é deixado a fermentar por dois dias, ferver  por meia a uma hora ou deixar alguns dias no sol e está pronto para servir com carne de caça, rã, peixe, camarão. Um pouco de água é adicionada no processo, de modo que 1 quilo de mandioca rende cerca de meio litro de tucupi. Ou muito mais, conforme se aumenta a diluição e o lucro, com perda de qualidade. Atualmente se tempera com folha de cipó de alho ou alho, coentro-de-pasto, alfavaca, pimenta-de-cheiro e sal.

Mas, na primeira vez que estive em Belém, uns quinze anos atrás, voltei com o claro propósito de reproduzir em casa o tucupi que temperava o pato e fazia o tacacá. Para quem não sabe, tacacá é aquela sopa que se forma na hora de comer, dentro da cuia: leva tucupi, mingau de goma feito a partir da fécula fresca ou seca misturada com água e cozida até ficar transparente, jambu cozido - a erva que adormece a boca -  e camarões secos cozidos. Pimenta, só para quem quer.  Sabendo um pouco da técnica,  cheguei em casa e adaptei com o que tinha em mãos usando a mandioca mansa. Fiquei feliz com o resultado e satisfeita quando publiquei no meu blog e leitores paraenses, longe de casa, em São Paulo ou na Europa, não só conseguiram prepará-lo como o acharam tão gostoso como que conheciam. Na Europa, usaram mandiocas parafinadas vindas da África.

Nesta última viagem ao Pará, escolhi comprar no mercado Ver o Peso  o tucupi de aparência bifásica – por cima é mais esbranquiçado e no fundo fica o líquido mais denso e amarelo.  É que o tucupi uniformemente amarelo às vezes é resultado de adulteração com corante artificial e há vários deles assim.  Se o líquido for cozido sem parar de mexer até começar a ferver, a coloração se mantém uniforme também, cheguei à esta conclusão na prática. Mas o adulterado é de um amarelo mais infantil, fácil de notar.  O artifício é mais gritante no mercado de Rio Branco, no Acre. Não sei se ainda é assim, mas há uns 4 anos, quando estive lá, estranhei os tucupis de amarelo vivo vendidos em sacos plásticos. Perguntei para uma vendedora que pigmento eles costumavam adicionar para dar aquela cor uniforme e ela me mostrou uma caixinha à venda contendo, conforme dizia o rótulo, corante artificial amarelo tartrazina – pelos males que causam, é proibido em alguns países mas não aqui -, além de açúcar e glutamato monossódico.

Isto não é pra desanimar nem pra convencer você a fazer seu tucupi em casa, afinal hoje já há bons produtos no mercado e mesmo em São Paulo podemos encontrar tucupi.  Em Belém, no ano passado, visitei uma fábrica com plantação própria, certificação orgânica,  processo de produção todo mecanizado e resultado excelente.  Vi também na Ilha do Marajó produtores que conservam técnicas artesanais indígenas de trituração manual e extração do líquido através de tipiti – a prensa com trama de fibra vegetal em formato de cobra. Depois de fermentado, deixam no sol por vários dias em vez de ferver. Estes, são inigualáveis.  Porém,  eles nem sempre estão por perto.

Como diz Câmara Cascudo, o tucupi e o tacacá não se aclimataram no Sul, no Centro e Nordeste do país, mas nunca é tarde para começar uma nova história com um ingrediente tão farto, ainda que seja um tucupi mais manso e mais pálido, e ampliar seu uso. O líquido fresco extraído da mandioca ou macaxeira para o feito de farinha e extração da fécula costuma ser um importante contaminante do solo ao redor de casas de farinha e fecularias. Pesquisadores vivem buscando uma solução para seu aproveitamento – coagulante para látex, fertilizante, alimentação animal etc, quase nunca envolvendo alimentação humana. 

No entanto, inspiração para uso não nos faltam: em Iquitos, no Peru, o sumo da mandioca vira um reduzido molho picante chamado ají negro. Em Roraima ou no alto Rio Negro, as etnias indígenas também reduzem o tucupi para fazer o tucupi preto usado em muitos pratos – às vezes, com formigas.

Sei que está morrendo de vontade de ir até a feira ou supermercado e comprar umas raízes, agora vendidas já descascadas, para extrair o puro leite de macaxeira que vai temperar sopas, fazer marinadas, cozinhar carnes, servir com assados, fazer caldas doces – já fiz até caramelo usando o sumo como único ingrediente, sem açúcar.  E ainda combinar com caldo de frango, caldo de peixe, leite de coco e ervas a gosto. Quem se anima?


Como fazer em casa o tucupi manso

1 kg de macaxeira descascada
1,5 xícara de água
Temperos: folhas de alfavaca, pimenta-de-cheiro, chicória-do-pará ou raiz de coentro, alho ou folha de cipó de alho e sal a gosto 

Pique a macaxeira em pedaços pequenos e divida em 4 porções. Junte a água à primeira porção e bata no liquidificador até formar uma massa. Coe num pano (um saco de fibra sintética próprio para lavar roupas em máquinas de lavar – sem este uso, é claro –  faz um ótimo coador), apertando bem. Vá guardando a fibra. Use o líquido coado para bater a próxima porção. E faça isto até bater tudo. Deixe o líquido em repouso por duas horas ou até a goma assentar no fundo. Separe o líquido, coloque numa jarra ou bacia, cubra com pano e deixe fermentar em temperatura ambiente por 48 horas. Leve o líquido ao fogo com os temperos e deixe cozinhar por meia hora, mexendo sempre só até começar a ferver. O restante do tempo, deixe em fogo baixo.  Espere esfriar, peneire e guarde na geladeira por até uma semana. Ou congele.

Rende: cerca de meio litro

Tudo se aproveita: a fibra que fica no pano pode ser usada para fazer os beijus mostrados na última coluna – basta temperar com sal, passar por peneira grossa diretamente sobre uma frigideira e cozinhar dos dois lados. Pode temperar com coco, castanhas ou ervas.  E a goma assentada pode ser seca com pano limpo, temperada com sal e usada para fazer beijus de tapioca.


Asinhas de frango no tucupi manso: tempere e asse meio quilo de asinhas de frango. À parte, coloque numa panela 3 colheres (sopa) de cebola roxa picada, meio tomate picado, 2 pimentas-de-cheiro doces picadas, 2 colheres (sopa) de cebolinha e coentro picados e 1 colher (sopa) de óleo. Deixe aquecer e junte 1,5 xícara de tucupi manso. Se quiser, junte pimentas ardidas inteiras. Deixe ferver, junte os pedaços de frango e cozinhe por 10 minutos só para apurar o sabor. Prove o sal e corrija, se necessário. Junte folhas de coentro e sirva com arroz ou farinha.



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