Ultimamente tenho ouvido dizer que nossas frutas em calda feitas na cal são nixtamalizadas (!) Defuntos mexicanos devem se revirar nas tumbas.
Primeiro, porque a palavra nem existe nos nossos dicionários - é um aportuguesamento do espanhol nixtamalización, e outra que nixtamalização só vale para milhos, produzindo efeito bem diferente daquele que a cal (CaO) provoca nas frutas. No cereal, a nixtamalização, ou seja, a cocção e demolho em água alcalina com controle de temperatura, faz com que a película fique mole, gelatinosa e se desprenda do grão, que fica com polpa amilácea tão maleável e elástica como se tivesse glúten. E isto é necessário para que se façam tortilhas finíssimas e flexíveis (e também melhora valor nutricional).
Já nas frutas, a cal é usada apenas no demolho e depois é descartada, e os frutos bem enxaguadas. A técnica produz uma película crocante e miolo macio, impedindo que o fruto se desmanche com o cozimento na calda. É usado para mamão verde, abóbora, casca de melancia e frutas cristalizadas.
Acontece que no último livro do Alex Atala - DOM: Redescobrindo Ingredientes Brasileiros, da Editora Melhoramentos, ele explica equivocadamente que nixtamalização é o nome da técnica usada para fazer nossas compotas. Deuses também erram, é normal. O problema é que um livro como este é muitas vezes usado como referência até por acadêmicos que, escolados, costumam ser mais desconfiados, e os erros se propagam. Foi o que aconteceu no livro de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, do Instituto Plantarum (muito bom, recomendo). Foi lançado ontem e, com tantas novidades, já quase o devorei todo como uma anta (no bom sentido do termo, em alusão à camiseta do Kinupp, com desenho do animal, e aos hábitos alimentares do herbívoro). Mas agora há pouco estava lendo a introdução quando me detive no glossário onde os autores explicam o significado de alguns termos culinários usados na obra. E está lá: nixtamalização. A definição se baseia toda no verbete do livro do Alex Atala, devidamente referendado. No final, há ainda a recomendação de que veja o post sobre o assunto no blog Come-se, onde explico com mais detalhe a técnica que não é nossa (agradeço imenso a referência, Lorenzi e Kinupp).
Você pode até achar que não tenho nenhuma autoridade ou notoriedade para discordar dos autores (e, isto, claro, não diminui em nada o valor do livro sobre as Pancs, que é indispensável e inovador e só temos a aprender com ele). Mas pergunte a algum mexicano o que é nixtamal. Pra Lourdes Hernandez, por exemplo - nossa mestra em assuntos hispano-americanos (que voltou para o México e nos deixou tantos legados sobre sua cozinha, mas pelo jeito precisava ter dado mais oficinas sobre tortillas).
Os posts onde explico o processo estão aqui:
http://come-se.blogspot.com.br/2011/03/tortilhas-com-milho-nixtamalizado-o.html
http://come-se.blogspot.com.br/2011/03/quinta-sem-trigo-13-milho-nixtamalizado.html
Como muita gente não clica link, aqui vai um pedaço do que escrevi lá:
"Não se sabe ao certo como tudo começou, mas o fato é que o processo de nixtamalização é transmitido de geração em geração na Mesoamérica desde os tempos pré-hispânicos. A palavra nixtamal vem do náuatle nixtli, que quer dizer cinza, e tamalli, massa. Trata-se de um amaciamento dos grãos duros de milho seco através de aquecimento em solução alcalina - água com cal ou cinza. Obtém-se, assim, o nixtamal ou milho nixtamalizado, com sua película dissolvida, que pode ser moído para fazer tortilhas e vários outros pratos.
Primeiro, porque a palavra nem existe nos nossos dicionários - é um aportuguesamento do espanhol nixtamalización, e outra que nixtamalização só vale para milhos, produzindo efeito bem diferente daquele que a cal (CaO) provoca nas frutas. No cereal, a nixtamalização, ou seja, a cocção e demolho em água alcalina com controle de temperatura, faz com que a película fique mole, gelatinosa e se desprenda do grão, que fica com polpa amilácea tão maleável e elástica como se tivesse glúten. E isto é necessário para que se façam tortilhas finíssimas e flexíveis (e também melhora valor nutricional).
Já nas frutas, a cal é usada apenas no demolho e depois é descartada, e os frutos bem enxaguadas. A técnica produz uma película crocante e miolo macio, impedindo que o fruto se desmanche com o cozimento na calda. É usado para mamão verde, abóbora, casca de melancia e frutas cristalizadas.
Acontece que no último livro do Alex Atala - DOM: Redescobrindo Ingredientes Brasileiros, da Editora Melhoramentos, ele explica equivocadamente que nixtamalização é o nome da técnica usada para fazer nossas compotas. Deuses também erram, é normal. O problema é que um livro como este é muitas vezes usado como referência até por acadêmicos que, escolados, costumam ser mais desconfiados, e os erros se propagam. Foi o que aconteceu no livro de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil, do Instituto Plantarum (muito bom, recomendo). Foi lançado ontem e, com tantas novidades, já quase o devorei todo como uma anta (no bom sentido do termo, em alusão à camiseta do Kinupp, com desenho do animal, e aos hábitos alimentares do herbívoro). Mas agora há pouco estava lendo a introdução quando me detive no glossário onde os autores explicam o significado de alguns termos culinários usados na obra. E está lá: nixtamalização. A definição se baseia toda no verbete do livro do Alex Atala, devidamente referendado. No final, há ainda a recomendação de que veja o post sobre o assunto no blog Come-se, onde explico com mais detalhe a técnica que não é nossa (agradeço imenso a referência, Lorenzi e Kinupp).
Você pode até achar que não tenho nenhuma autoridade ou notoriedade para discordar dos autores (e, isto, claro, não diminui em nada o valor do livro sobre as Pancs, que é indispensável e inovador e só temos a aprender com ele). Mas pergunte a algum mexicano o que é nixtamal. Pra Lourdes Hernandez, por exemplo - nossa mestra em assuntos hispano-americanos (que voltou para o México e nos deixou tantos legados sobre sua cozinha, mas pelo jeito precisava ter dado mais oficinas sobre tortillas).
Os posts onde explico o processo estão aqui:
http://come-se.blogspot.com.br/2011/03/tortilhas-com-milho-nixtamalizado-o.html
http://come-se.blogspot.com.br/2011/03/quinta-sem-trigo-13-milho-nixtamalizado.html
Como muita gente não clica link, aqui vai um pedaço do que escrevi lá:
"Não se sabe ao certo como tudo começou, mas o fato é que o processo de nixtamalização é transmitido de geração em geração na Mesoamérica desde os tempos pré-hispânicos. A palavra nixtamal vem do náuatle nixtli, que quer dizer cinza, e tamalli, massa. Trata-se de um amaciamento dos grãos duros de milho seco através de aquecimento em solução alcalina - água com cal ou cinza. Obtém-se, assim, o nixtamal ou milho nixtamalizado, com sua película dissolvida, que pode ser moído para fazer tortilhas e vários outros pratos.
Há cerca de cem anos a trituração do milho era feita em metates, até surgirem os moinhos de pedra e, recentemente, os de metal. Embora a vida moderna tenha induzido ao uso de produtos pré-prontos como as farinhas de milho nixtamalizado à qual basta adicionar água, o hábito de preparar o próprio nixtamal ainda sobrevive nos povoados mexicanos, nas zonas rurais. O aprendizado continua sendo passado de mãe pra filha, com a vantagem que agora há muitos moinhos públicos espalhados por todo o país. Basta levar o nixtamal e sair com a massa pronta.
Embora não se tenha muitas informações de como nasceu a necessidade de nixtamalizar o milho, hoje há inúmeros estudos (veja links lá embaixo) mostrando as alterações físico-químicas que acontecem durante o processo. Sabe-se que a nixtamalização melhora o aporte nutritivo de proteínas, aumenta o teor de cálcio, fósforo e ferro, transforma parte do amido em amido resistente (como as fibras solúveis, é importante para a saúde da microflora do cólon, por exemplo) e ainda torna a niacina (vitamina B3) biodisponível, só para citar algumas propriedades. Isto, sem falar na melhoria de performance física e sensorial como ingrediente. O milho tratado assim torna-se maleável e flexível, tornando possível o feitio de tortilhas que podem ser abertas até ficarem muito finas - ato fácil para o trigo, mas quase impossível para outros amiláceos sem glúten. E ainda parece libertar todo seu sabor oculto nos grãos secos inodoros e insípidos." (Neide Rigo, Come-se - texto integral aqui).
E deixo aqui os links indicados no post para quem quiser se aprofundar no assunto.