Seu Afonso Almeida da Silva, da Coopercuc, que produz maracujá da caatinga em meio a mandacarus, em Canudos-BA |
Está lá no blog do caderno Paladar:
http://blogs.estadao.com.br/paladar/nem-doce-nem-azedo-da-caatinga/. Mas reproduzo aqui também:
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Nem doce, nem azedo. Conheça o maracujá da Caatinga
Por Neide Rigo
Teve um tempo que na caatinga não havia outro maracujá que não aquele que nascia tutorado por um pé de pau. O fruto, também conhecido como maracujá-do-mato ou maracujá-de-boi, da espécie Passiflora cincinnata, as crianças abriam, polvilhavam açúcar e comiam como passa-tempo. Para o suco, bastava passar a polpa pálida e ácida por uma peneira, amassando com uma colher para desprender das sementes o suco quase branco. Era, então, só juntar água e adoçar para ter um refresco providencial naquele calor seco do sertão.
Mesmo tão útil para hidratar de maneira prazerosa ele nunca recebeu muita atenção, simplesmente porque estava ali, sempre por perto. Por isto, quase ninguém se preocupava em cultivar, manejar, vendê-lo nas feiras. Depois da disseminação da espécie de maracujá mais suculenta e amarela que a gente conhece dos supermercados e feiras de todo o país, o Passiflora edulis, aí sim é que a fruta foi de vez relegada ao papel de comida de boi, ou de cabra que é o que mais tem hoje no sertão, e brinquedo de criança, afinal a fruta tem casca frágil e quebradiça com recheio suculento e pode ser irresistível para uma mente infantil ou um espírito de porco adulto vê-la se espatifando contra qualquer alvo vivo ou não.
No entanto, os maracujás nativos são tantos e tão variados na forma e sabor que é uma pena que só os dois tipos melhorados, o amarelo azedo, e o doce, dominem as gôndolas de frutas.
Felizmente um grupo de mulheres em Uauá, na Bahia (sim, fui pra lá de novo para a festa do Umbu) percebeu há alguns anos que tinha nas mãos uma raridade e passou a produzir geleias e polpa para suco. Hoje, o cultivo e manejo é incentivado por estas mulheres que, junto com outros produtores, pertencem à Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá – Coopercuc, que trabalha também com o umbu.
Agora a fruta é reconhecida como produto de forte identidade cultural com o bioma caatinga e com a comunidade que conseguiu alçá-la à atual posição, quer como bem econômico ou ingrediente culinário. Por isto é um dos produtos abrigados na Arca do Gosto, projeto do Slow Food que identifica, cataloga e divulga alimentos com estas características e ameaçados de desaparecer – a imposição de variedades comerciais padronizadas e a substituição da biodiversidade são considerados como uma ameaça.
Desde 2006 o suco está presente na merenda escolar da região, já não se vê mais criança desperdiçando a fruta e, durante a safra que vai de julho a setembro, bacias do maracujás podem ser encontrados nas feiras. Aliás, a safra só vale para a planta que cresce naturalmente nos fundos ou fechos de pasto, que são extensas áreas de uso comum entre as comunidades tradicionais na caatinga, com vegetação nativa. E estes maracujás recebem selo de orgânico. Para o maracujá cultivado, com alguma irrigação, e muita gente já cultiva, a produção se dá o ano todo e muitas propriedades também são orgânicas. É com estas frutas certificadas que trabalha a cooperativa.
É lógico, não vai ser fácil encontrar a fruta fresca nas feiras fora da caatinga, mas podemos comprar a geleia em alguns supermercados da rede Pão de Açúcar ou na mercearia Chiapetta, em São Paulo. E a cooperativa também faz vendas diretas.
Fora o suco, a geleia ou o doce pastoso, pouco uso se faz da fruta na cozinha, mas o potencial é enorme. Não só com a parte suculenta ou arilo, que fica grudada à semente, mas também com a branca e carnuda que separa a polpa da película.
A coloração da casca será sempre verde, mesmo quando a fruta amadurece. Muda um pouco do verde escuro para o claro ou amarelado e às vezes apresenta uma nuança meio arroxeada, mas o ponto de maturação só se percebe mesmo pelo peso aumentado, pelo toque da casca, mais macia, e pelo perfume acentuado. Apesar da fragilidade da casca, a polpa se mantém íntegra e suculenta por muito tempo mesmo sem refrigeração.
Já fiz muitas experiências com este maracujá, pois sempre trago geleia e a fruta fresca quando viajo para a caatinga, mas desta vez voltei com a ideia de combiná-lo com a carne de cabrito ou de cordeiro, provisão muito comum no dia-a-dia do sertanejo. Poderia ter usado a polpa fresca, mas a geleia é mais prática pois já vem concentrada e já com açúcar, ingrediente desejável no molho. E é infinitamente mais acessível que a fruta fresca para quem não vive no sertão. Se estivesse lá, usaria o alecrim do campo como erva, que tem aroma meio menta, meio tomilho, mas com hortelã, que já é um clássico complemento para estas carnes, não ficou nada mal.
CARRÉ DE CORDEIRO COM MOLHO DE MARACUJÁ DA CAATINGA
Para a carne
2 colheres (chá) de sal
1 colher (chá) de pimenta-do-reino moída na hora
1 colher (sopa) de geleia de maracujá da caatinga
1 carrê de cordeiro fatiado (1,3 kg)
Para o molho
4 colheres (sopa) de geleia de maracujá da caatinga
1 colher (sopa) de água
2 colheres (sopa) de suco de um limão rosa
1 pimenta dedo-de-moça sem sementes, picada finamente
20 folhas de hortelã picadas finamente
Sal a gosto
Prepare a carne: misture bem o sal, a pimenta e a geleia e tempere a carne. Deixe pegar gosto por meia hora. Aqueça uma grelha elétrica ou de fogo e doure a carne por 3 minutos de cada lado. Reserve.
Prepare o molho: misture a geleia e a água e leve ao fogo bem baixo, mexendo, para a geleia derreter. Espere esfriar um pouco e junte o suco de limão, a pimenta, a hortelã e o sal. Misture bem.
Sirva a carne com o molho acompanhado de mandioca cozida.
Sirva a carne com o molho acompanhado de mandioca cozida.
Rende: 6 a 8 porções