... Quando, na verdade, a água é água? Água é água, o dicionário diz, quando é um líquido incolor, inodoro e transparente, consistindo em dois volumes de hidrogênio para um de oxigênio. Pode também ser de chuva, mar, ou um brilho de diamantes. A água a que me refiro, porém, a água que a donzela sulista não conseguia ferver, é a clara e boa água que sai de uma torneiro ou, se você tem sorte, de um poço ou de uma fonte. MFK Fisher em Como Cozinhar um Lobo. Tradução Nina Horta, Companhia das Letras. Escrito em 1942
Se a escritora norte-americana MFK Fisher (1908 – 1992) estivesse nos vendo diante desta histórica estiagem tentando buscar soluções para o uso inteligente da água, certamente nos diria sarcasticamente como reagiu sua avó diante da conversa de amigas que discutiam a melhor forma de racionar recursos durante a guerra: Ela me interessa especialmente, queridas, porque depois de escutá-la esta tarde percebo que, desde que me casei, há mais de cinquenta anos, tenho vivido sempre com um orçamento de guerra sem me dar conta! Não sabia que usar o senso comum na cozinha era moda apenas nas emergências. (Mesma referência)
O fato é que ninguém mais pode ignorar que temos que economizar água. Estou fazendo este curso de permacultura e o tema de quarta feira foi justamente água. Há muito que pode ser feito para que tenhamos água com abundância perto de nós e isto tem a ver com captação, retenção, permeabilização dos solos etc. Há soluções para serem feitas pelos órgãos públicos e é nisso que muita gente coloca toda sua esperança acreditando que sendo assim nada resta a fazer senão abrir a torneira com a certeza de que a água sempre jorrará. E se não jorrar, espernear. Há soluções caseiras também para captação de água de chuva para usos diversos, recursos para diminuir a evasão e desperdício etc. Está certo que para muita coisa há que se mobilizar algum esforço e até algum investimento. Mas será que mesmo quem não queira ou não possa captar sua própria água não pode ao menos economizar para que não a falte a água coletiva?
No Senegal |
Em Uauá - BA |
Eu tenho chácara em frente a uma represa que abastece o sistema cantareira e tenho visto o quanto a água tem abaixado. É meio desesperador. Já pensaram o que é viver sem água nas torneiras? No Senegal, por onde passei, as mulheres acordavam super cedo pra puxar água de poço de 60 metros de profundidade e levavam pras aldeias em bacias sobre a cabeça. Faziam várias viagens para encher uma tina que abasteceria as famílias durante todo o dia. Não conseguem plantar quase nada nos 9 meses de seca subsahariana. Se quiser veja também a história da menina Joaninha falando da água lá de Uauá, sertão da Bahia.
A gente, confortavelmente, tem água potável não só pra beber e cozinhar mas também pra desperdiçar lavando quintal, regando plantas, limpando carros e até pra carregar pra longe nossos dejetos. Até onde conseguiremos levar isto sem sofrer consequências de abastecimento e produção de alimentos?
Muita gente desta geração acreditava até pouco tempo atrás que as consequências de nossos atos só seriam sentidos no futuro quando não estaremos mais aqui. E fodam-se as novas gerações, nossos netos e bisnetos. Mas não deu tempo. A emergência está aí, água é vida. Será que a lavoura recém germinada terá fôlego pra chegar a setembro? Vamos desanimar, vamos deixar a bola rolar pra ver no que dá? comer o que tem e depois o que vem? Nada disso. Vamos fazer o que está ao nosso alcance que somados somos muitos. Vamos nos mobilizar para as pequenas coisas. Aos poucos começamos a ver os resultados, nos animamos a fazer mais e garantimos nossa comida do ano.
Na cozinha podemos reduzir imensamente o desperdício de água. Mas em outras partes da casa, igualmente. Primeiro que não precisamos tomar tantos banhos por dia mesmo no calor. Não sei que mania é esta de brasileiro tomar tanto banho. Um por dia está bom, não? Está certo, refresca. Ou se tivermos por perto um rio ou uma cachoeira é uma delícia passar o dia na água. Mas pra tirar suor, um pano molhado no rosto resolve, especialmente se estamos sozinhos em casa e podemos esperar mais um pouco para tomar um bom banho. E um bom banho não precisa durar mais que dois minutos a não ser que se tenha uma cabeleira a ser lavada ou que não se tenha muita mobilidade corporal. Eu já cronometrei e posso dizer que com chuveiro comum aberto dá pra lavar bem todas as partes e enxaguar tudo em dois minutos. O enxague é rápido se não usamos muito sabonete. Não é todo o corpo que precisa de sabonete, afinal precisamos de certa oleosidade para manter a proteção de nossa cútis. A não ser que se trate de uma pessoa encardida demais, com aqueles calcanhares com macuco que nem pedaço de tijolo resolve. Se for apenas para tirar poeira e suor, dois minutos bastam ou um lencinho engana. E se quiser ficar brincando na água, é só botar uma baciona embaixo do chuveiro e usar depois do chuveiro desligado.
Também não precisamos lavar quintal com água limpa. Aliás, tire a maior parte dele e plante na terra livre. O meu eu não lavo nunca, apenas varro. Só quando chove. Quando a maioria dos quintais não era pavimentado, era só de terra ou jardim, o que se fazia era apenas varrer e ninguém reclamava. Empurrar a sujeira com mangueira d´água, então, nem pensar, né? Mas para quem faz questão ou que não leva os pets pra passear, é só desviar a mangueira de saída da máquina de lavar ou do tanque para um tambor e, pronto, terá uma ótima água para vários usos - a com sabão e a do primeiro enxague, para lavar o quintal. A do último enxague, para reuso na próxima lavada de roupa ou para regar plantas. Aliás, veja cada projeto bacana aqui.
Não é hora de podar. As plantas refrescam a gente e protegem a terra do ressecamento. |
Bacia com três águas
Com isto, chegamos à cozinha de onde sairá a maior parte da água que vai regar as plantas. Sempre gostei de lavar louça em bacias com três águas. Era assim que a louça era lavada quando eu era criança no sítio dos meus avós e na casa dos tios no Paraná. E nem era por falta de água que corria farta nos córregos. Alguém lavava, outros enxaguavam e enquanto isso nos divertíamos. Era gostoso no calor molhar a mão na água fria, fazer espumas com o sabão de soda, e espirrar água em quem não ajudava. Se as águas ficavam muito sujas era só substituir por limpa.
De vez em quando também faço isto em casa. E agora, definitivamente. Parece complicado e não muito higiênico, mas é fácil e eficiente - desafio o doutor Bactéria a comparar pratos lavados assim e na torneira. Também desafio o doutor cronômetro a comparar o tempo, muito menor com as bacias. E o doutor otorrino, e este tenho em casa, a medir os decibéis da cozinha na hora do trabalho. Acho insuportável ouvir música e lavar louça ao mesmo tempo, por exemplo, pois o barulho da torneira sobre as louças fica ainda mais irritante. Uma cozinha silenciosa e fresca é o melhor dos lugares. Dá pra ouvir Bach e conversar sem esforço enquanto trabalha. Outra vantagem é que o uso de detergente ou sabão será infinitamente menor. E você ainda pode reaproveitar as águas para outras coisas.
No final, o pano de pia e a esponja podem ser lavados e enxaguados nas águas de enxague. Em seguida, o baldinho de lixo. O coador de pano é melhor lavar na torneira estando uma das bacias de enxague por baixo para recolher o pó. Esta água com pó será usada para regar as plantas. Para limpar o fogão e a cuba da pia, a água de sabão. Por fim, enxague tudo com a água limpa restante em uma das bacias. Se sobrar água de sabão ainda em condições de ser usada, coe os resíduos, junte um pouco de álcool ou desengordurante e use para limpar o chão. Tenho usado este produto que ganhei da amiga Sonia, mas quando acabar vou comprar mais, pois é econômico, concentrado, menos agressivo para o meio ambiente e dá de dez em eficiência nos produtos de mercado.
No fim, coloque tudo pra secar ao sol que, afinal, ele também serve pra muita coisa, entre elas, secar o que está molhado. A barriga com avental, obvio, também estará molhada. Mas, pra secar barriga, só mesmo pegando na enxada, fechando a boca ou, pra quem tem fé, comendo goji berry, cranberry, elderberry e outras poha-berries que você poderá ver anunciados num mundo paralelo totalmente perpendicular ao Come-se.
É isto. Quem guarda, tem. E você, o que tem feito pra economizar? Veja aí o passo-a-passo para quem quiser se inspirar.
Os talheres podem ser lavados separados com água quente |
A última água estará sempre limpa e o copo sai brilhando |
Umas gotas de limão na segunda água ajuda a quebrar a gordura e tirar a espuma. Pode ser um limão velho ou gotas de vinagre |
No final, lave em água corrente o coador sobre a bacia, para poder aproveitar a água nas plantas |
Uma jardineira com muita planta ajuda a manter a umidade que é completada com a água de enxague com pó |
O pano de pia pode ser enxaguado na outra água de enxague |
O lixinho também |
Um pouco da água de sabão pra lavar a cuba |
O restos da grade podem ir pra bacia na água que também vai pras plantas |
No final, tudo pra secar ao sol, incluindo bacias, esponja, coador, panos |
A água de sabão, se não estiver emporcalhada, pode ser a crescida de um pouco de desengordurante ou álcool e usada pra limpar o chão |
Uma cozinha limpa sem desperdício em poucos minutos |