Na semana passada estive em Curitiba e, no meio da semana, resolvi ir com meus pais comer barreado em Morretes, cidade não muito longe dali. O prato à base de carne, feito tradicionalmente em panela de barro vedada com barro ou mistura de farinha de mandioca e deixado por longas horas em fogo de lenha bem baixo, é daqueles ditos cozidos à baixa temperatura, se adaptado à linguagem da gastronomia contemporânea, porém, contraditoriamente, nasceu justamente da falta de tempo para a barriga à beira do fogão. O fogo e o tempo trabalhavam por si enquanto o dono ou dona da barriga estava na lida da colheita ou na dura missão de brincar o carnaval. Chegando em casa, o prato estava pronto e, se guardado, caso a labuta e/ou a brincadeira perdurassem, era requentá-lo, quando fica ainda melhor, misturar com a farinha de mandioca fininha, sempre à mão, cascar um banana e nhac.
Embora tenha passado algumas férias de infância na região, especialmente em Antonina, onde tínhamos parentes e que também faz barreado, o prato não faz parte das minhas memórias gustativas. Mas aprendi a comer e a gostar. A primeira vez foi mesmo em Morretes, há muitos anos. Fomos ao restaurante Maladozo à beira do rio Nhundiaquara e me lembro de termos sido servidos pelo garçom, que montou nosso prato à mesa misturando o pirão bem quente à farinha fina, ajeitando depois a carne e a banana, que era prata, tinha certa acidez e uma semente dura e preta. Combinação perfeita. Havia outros mimos, se não me engano, como cachaça e bala. Estava tudo muito bom. Depois comi barreado no restaurante Tordesilhas, onde a panela selada é aberta à vista do cliente e montado na hora. Mara Salles quando está por perto gosta de fazer o ritual pessoalmente com toda a delicadeza que lhe é particular. E o sabor, muito melhor que aquele que já havia comido. Agora, mais que nunca, continua imbatível.
Desta vez, porém, resolvi pesquisar antes de comer outro barreado de Morretes. Segundo indicações de clientes encontradas na rede, fui parar no Villa Morretes. Chegamos mais cedo, fomos convidados a entrar com alegria. O lugar é lindo, à beira do rio, num pedaço dele especialmente sombreado nas margens florestais e prateado de luz na água. Os atendentes são muito simpáticos, e a casa bem decorada e cuidada. Infelizmente ninguém vai e volta a um restaurante só pela simpatia e pela beleza do lugar, mas principalmente pela comida, afinal é por ela que oficialmente se cobra. Bem, me senti a própria turista idiota comendo um pirão de carne de panela desfiada super salgada - a ponto de meu pai perguntar se era um prato de carne seca mal demolhada -, com um arroz comum, e uma banana super madura fatiada por cima. Foi isto, dois pratos trazidos assim à mesa, para que nós nos servíssemos. Sequer uma banana por pessoa. E uma banana bem madura, daquelas super doces e mais pra mole, sem acidez alguma. Banana, pra combinar com comida salgada, tem que ser doce, porém naquele ponto que se conserva ainda certa acidez, quando está bem firme. Passando disso, melhor usar em sobremesas. Bem, comi, me senti enganada e, para atenuar minha frustração, pedi para trazerem caldo e farinha, que meu barreado gosto de misturar no prato na hora. Demoraram, demoraram e por fim trouxeram o caldo num pote de barro esmaltado e a farinha na farinheira. O tempero era inexpressivo e o cominho, marca forte do barreado, passava longe, tão longe, que ninguém o notou. Ah, já ia me esquecendo da gentileza do couvert - pãezinhos franceses duros fatiados com uns patezinhos: de salmão - e deste me lembro porque desconfio de salmões -, e mais dois outros dos quais não me recordo o sabor, mas que não fariam falta.
Para não me sentir completamente lesada ainda pensei que talvez aquele resto de carne que não conseguimos comer pudesse virar um recheio de pastel de angu com uma massa insossa pra compensar. Estávamos indo pra casa de praia dos meus pais em Guaratuba e lá poderíamos salvar a carne para o jantar com uma cerveja bem gelada. Pedi pra moça. Pode embrulhar pra mim, que vou levar? Ela demorou um pouco e respondeu que ia ver se podia. Demorou, demorou e voltou dizendo que não podia porque não tinham embalagem para viagem. Portanto, mais da metade do que veio à mesa voltou pra cozinha e sabe-se lá se foi pro lixo. Na hora de ir embora passamos pelo fogão de ferro posicionado no meio do salão. Saímos bem insatisfeitos. Achei que meus pais poderiam ter gostado do convite, já que vão pouco a restaurantes, mas a única coisa que minha mãe dizia é que podia fazer um daquele muito melhor. Tenho certeza disso. - Bem, pai, pelo menos tomamos o cafezinho cortesia no fogão de lenha estava razoável, né? Fogão de lenha? que fogão de lenha o quê, aquele era um fogão de lenha que adaptaram para gás, você não viu? Não, não vi. Mas agora sei, muitos restaurantes ali são assim: finjo que estou fazendo um barreado e você finge que come um barreado, mas na hora de pagar é real, sem fingimento.
Pelo menos uma coisa me consola. Morretes, Paranaguá ou Antonina podem brigar à vontade pela primazia do barreado, embora ache que deveriam brigar pela qualidade do que servem. Agora, pela melhor forma de enganar turista a briga é muito mais extensa. Em Barcelona, por exemplo, comi na praia uma paella feita com corante amarelo e arroz seco que era de envergonhar qualquer catalão civilizado. Cidades turísticas não fogem disso.
Morretes é uma cidade linda, com casario antigo e preservado, um rio límpido passando no meio da cidade, grandes flamboiãs com seu galhos floridos de vermelho arcando sobre a água, e alcançada por uma estrada de pedra que é a mais incrível que já percorri. O caminho é todo ladeado pela serra do mar repleto de bromélias, urtigas com frutos vermelhos, gabirobas, orquídeas, além das hortênsias exóticas plantadas nas margens. Como fomos no meio da semana, não havia trânsito algum e podíamos parar para fotografar e apreciar a floresta. Chegando na cidade, há muitas lojinhas de artesanato. Mas não se engane, que muitas lojas ali são como os restaurantes e cafés, no melhor estilo pega-turista (aliás, parei num lugar escrito café-bar e não consegui tomar um café porque não vendiam). Vários "artesanatos" de palha, bambu e resinas expostos ali vêm da China e aqui em São Paulo, em qualquer loja popular, costumo ver por menos da metade do preço. Mesmo em relação às panelas para barreado é bom olhar com esperteza, pois podem ser mal-cozidas e rachar nos primeiros minutos das longas horas que pretende cozinhar seu barreado.
O fato é que de todos barreados que comi até hoje, o melhor está aqui em São Paulo, no restaurante Tordesilhas.
Ainda na casa dos meus pais tentei fazer um usando panela de ferro, mas, claro, esquentou rápido demais, secou o caldo, embora o sabor tenha ficado bom. Em casa, resolvi fazer na panela de pressão, já que não preciso ir à colheita, não gosto de pular carnaval e acho desperdício cozinhar por tanto tempo no gás. Os puristas podem abominar, mas posso garantir que o resultado é muito melhor que o barreado que comi em Morretes. Adaptei uma receita da Mara Salles, do Tordesilhas - que faz direitinho na panela de barro.
Barreado de panela de pressão (preparada para as pedradas). Ou cozido de panela, que seja
1 quilo de braço sem gordura picado em cubos de 2 centímetros
80 g de bacon cortado igual
2 folhas de louro
2 tomates médios picados
1 cebola picada
1 xícara de cheiro-verde (salsa e cebolinha) picado
1 colher (chá) de pimenta-do-reino moída na hora
2 colheres (chá) de cominho moído na hora
2 colheres (chá) de sal
1/4 de xícara de vinagre
2 colheres (sopa) de óleo
4 xícaras de água
Coloque todos os ingredientes numa panela de pressão (de preferência de inox), tampe e leve ao fogo. Quando a válvula chiar, abaixe o fogo no mínimo e deixe cozinhar por uma hora. Desligue o fogo, espere acabar a pressão, abra a panela e certifique-se de que a carne esteja tão macia que se quebre ao ser pressionada por uma colher de pau. Se não, tampe novamente e cozinhe mais um pouco. Pode chegar a duas horas. Se precisar, acrescente mais água quente. Ao final, confira o sal e o cominho e corrija se necessário e à gosto. Desfaça os pedaços de carne com as costas de uma colher de pau. Tem que restar bastante caldo para o pirão.
Sirva com farinha de mandioca bem branca e fina. Coloque umas 3 colheres de sopa de farinha no prato, jogue por cima uma concha de caldo bem quente. Mexa para fazer um pirão, junte a carne e sirva com uma banana prata ou nanica madura, mas bem firme. Com banana da terra dourada também fica ótimo.
Rende: 10 porções ou mais
O da Mara (do Tordesilhas), aqui , preparado na Serra da Canastra |
Veio assim: prato pra três, tudo misturado, com uma banana super madura |
Desta vez, porém, resolvi pesquisar antes de comer outro barreado de Morretes. Segundo indicações de clientes encontradas na rede, fui parar no Villa Morretes. Chegamos mais cedo, fomos convidados a entrar com alegria. O lugar é lindo, à beira do rio, num pedaço dele especialmente sombreado nas margens florestais e prateado de luz na água. Os atendentes são muito simpáticos, e a casa bem decorada e cuidada. Infelizmente ninguém vai e volta a um restaurante só pela simpatia e pela beleza do lugar, mas principalmente pela comida, afinal é por ela que oficialmente se cobra. Bem, me senti a própria turista idiota comendo um pirão de carne de panela desfiada super salgada - a ponto de meu pai perguntar se era um prato de carne seca mal demolhada -, com um arroz comum, e uma banana super madura fatiada por cima. Foi isto, dois pratos trazidos assim à mesa, para que nós nos servíssemos. Sequer uma banana por pessoa. E uma banana bem madura, daquelas super doces e mais pra mole, sem acidez alguma. Banana, pra combinar com comida salgada, tem que ser doce, porém naquele ponto que se conserva ainda certa acidez, quando está bem firme. Passando disso, melhor usar em sobremesas. Bem, comi, me senti enganada e, para atenuar minha frustração, pedi para trazerem caldo e farinha, que meu barreado gosto de misturar no prato na hora. Demoraram, demoraram e por fim trouxeram o caldo num pote de barro esmaltado e a farinha na farinheira. O tempero era inexpressivo e o cominho, marca forte do barreado, passava longe, tão longe, que ninguém o notou. Ah, já ia me esquecendo da gentileza do couvert - pãezinhos franceses duros fatiados com uns patezinhos: de salmão - e deste me lembro porque desconfio de salmões -, e mais dois outros dos quais não me recordo o sabor, mas que não fariam falta.
Para não me sentir completamente lesada ainda pensei que talvez aquele resto de carne que não conseguimos comer pudesse virar um recheio de pastel de angu com uma massa insossa pra compensar. Estávamos indo pra casa de praia dos meus pais em Guaratuba e lá poderíamos salvar a carne para o jantar com uma cerveja bem gelada. Pedi pra moça. Pode embrulhar pra mim, que vou levar? Ela demorou um pouco e respondeu que ia ver se podia. Demorou, demorou e voltou dizendo que não podia porque não tinham embalagem para viagem. Portanto, mais da metade do que veio à mesa voltou pra cozinha e sabe-se lá se foi pro lixo. Na hora de ir embora passamos pelo fogão de ferro posicionado no meio do salão. Saímos bem insatisfeitos. Achei que meus pais poderiam ter gostado do convite, já que vão pouco a restaurantes, mas a única coisa que minha mãe dizia é que podia fazer um daquele muito melhor. Tenho certeza disso. - Bem, pai, pelo menos tomamos o cafezinho cortesia no fogão de lenha estava razoável, né? Fogão de lenha? que fogão de lenha o quê, aquele era um fogão de lenha que adaptaram para gás, você não viu? Não, não vi. Mas agora sei, muitos restaurantes ali são assim: finjo que estou fazendo um barreado e você finge que come um barreado, mas na hora de pagar é real, sem fingimento.
Pelo menos uma coisa me consola. Morretes, Paranaguá ou Antonina podem brigar à vontade pela primazia do barreado, embora ache que deveriam brigar pela qualidade do que servem. Agora, pela melhor forma de enganar turista a briga é muito mais extensa. Em Barcelona, por exemplo, comi na praia uma paella feita com corante amarelo e arroz seco que era de envergonhar qualquer catalão civilizado. Cidades turísticas não fogem disso.
Morretes é uma cidade linda, com casario antigo e preservado, um rio límpido passando no meio da cidade, grandes flamboiãs com seu galhos floridos de vermelho arcando sobre a água, e alcançada por uma estrada de pedra que é a mais incrível que já percorri. O caminho é todo ladeado pela serra do mar repleto de bromélias, urtigas com frutos vermelhos, gabirobas, orquídeas, além das hortênsias exóticas plantadas nas margens. Como fomos no meio da semana, não havia trânsito algum e podíamos parar para fotografar e apreciar a floresta. Chegando na cidade, há muitas lojinhas de artesanato. Mas não se engane, que muitas lojas ali são como os restaurantes e cafés, no melhor estilo pega-turista (aliás, parei num lugar escrito café-bar e não consegui tomar um café porque não vendiam). Vários "artesanatos" de palha, bambu e resinas expostos ali vêm da China e aqui em São Paulo, em qualquer loja popular, costumo ver por menos da metade do preço. Mesmo em relação às panelas para barreado é bom olhar com esperteza, pois podem ser mal-cozidas e rachar nos primeiros minutos das longas horas que pretende cozinhar seu barreado.
O fato é que de todos barreados que comi até hoje, o melhor está aqui em São Paulo, no restaurante Tordesilhas.
Na panela de ferro não dá muito certo, não |
O meu, com bastante pirão e banana no ponto certo |
1 quilo de braço sem gordura picado em cubos de 2 centímetros
80 g de bacon cortado igual
2 folhas de louro
2 tomates médios picados
1 cebola picada
1 xícara de cheiro-verde (salsa e cebolinha) picado
1 colher (chá) de pimenta-do-reino moída na hora
2 colheres (chá) de cominho moído na hora
2 colheres (chá) de sal
1/4 de xícara de vinagre
2 colheres (sopa) de óleo
4 xícaras de água
Coloque todos os ingredientes numa panela de pressão (de preferência de inox), tampe e leve ao fogo. Quando a válvula chiar, abaixe o fogo no mínimo e deixe cozinhar por uma hora. Desligue o fogo, espere acabar a pressão, abra a panela e certifique-se de que a carne esteja tão macia que se quebre ao ser pressionada por uma colher de pau. Se não, tampe novamente e cozinhe mais um pouco. Pode chegar a duas horas. Se precisar, acrescente mais água quente. Ao final, confira o sal e o cominho e corrija se necessário e à gosto. Desfaça os pedaços de carne com as costas de uma colher de pau. Tem que restar bastante caldo para o pirão.
Sirva com farinha de mandioca bem branca e fina. Coloque umas 3 colheres de sopa de farinha no prato, jogue por cima uma concha de caldo bem quente. Mexa para fazer um pirão, junte a carne e sirva com uma banana prata ou nanica madura, mas bem firme. Com banana da terra dourada também fica ótimo.
Rende: 10 porções ou mais