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Uma homenagem da Nina Horta à coluna Nhac. Ou Ilha Deserta

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“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”

Tratado geral das grandezas do ínfimo, Manoel de Barros

Não, ninguém me tratou de imbecil. Sobre minha própria insignificância, sei e reconheço (ou não estaria aqui expondo vaidades). Mas me reconheço na fraqueza para elogios. Só sei que ser citada por uma mestra da escrita e da vida, uma ídola desde e para sempre, é uma homenagem que nunca saberei agradecer.  A Nina é colunista da Folha, assim como sou do Estadão, mas nossa amizade não tem barreiras gráficas e editoriais. E fico feliz quando um jornal age assim com sabedoria - para quem não sabe o nome da minha coluna no Estadão é Nhac. Obrigada à Nina e parabéns à Folha. 
Vá lá ao blog da Nina e saiba que passará ali boas horas de deliciosa leitura: 
http://ninahorta.blogfolha.uol.com.br/

Mas, e você, o que levaria para  uma ilha deserta? - eu já estive numa praia deserta e sei que ali não morreria de fome.

O texto está copiado aqui: 

Ilha Deserta 

De Nina Horta 

"Que comida você levaria para uma ilha deserta? A pergunta não é séria. Não vale responder calculando os prováveis dias sem salvamento ou as correntezas que levariam rapidamente as garrafas com pedidos de socorro. Ficção, ficção.
Não tem geladeira, mas pode levar sorvete, pois na ficção as coisas acontecem diferentemente do mundo real, daí a graça.
E não vale levar ninguém para cozinhar para você, porque se fosse assim todos escolheríamos logo a minha amiga Neide Rigo, que reconhece todos os matinhos e plantas e os cozinha. E nhac! A ilha ficaria totalmente deserta, não só de almas como de fauna e flora com a presença dela. Não sei não, talvez a cada matinho que comêssemos ela plantasse outro pra que isso não acontecesse.
Água de coco não iria precisar, que bom, água de coco é a frescura mais fresca que existe, e a melhor coisa é a polpa do coco verde. E sabem que existe doce daquilo? Uma vez, um bendito leitor me trouxe um pote de Recife.
Bom, eu levaria jabuticabas que é a comida de que mais gosto.
Na realidade, sentiria mais falta de pão com manteiga, é claro, mas calculadas as dificuldades de resgate por um pequeno bote ou helicóptero, prefiro estar mais magra. Vão as jabuticabas, mesmo.
A maioria de nós brasileiros não passaria sem arroz e feijão, sem café, sem Coca-Cola, sem farinha, sem biju, sem açaí, sem tacacá, ou um viradinho…  Na verdade, os problemas da ilha não são tão rasos assim, há muita vã filosofia na ilha deserta, no arco, na flecha, na solidão, na falta do outro, no diálogo, no mestre, no horizonte, no amor ao amigo quando sexta-feira aparece. E o papo no cafezinho.
E há a infindável estultícia se alguém não nos dá a mão. A impossibilidade de inventar um fósforo ou raspar dois pauzinhos para o fogo, e teríamos que passar a vida comendo do bufê frio. Agarrar peixes com as mãos, se lançar sobre eles de barriga, nada adianta, são escorregadios demais, há sempre que reinventar o anzol, acho ilha deserta uma coisa trabalhosíssima e nem vejo desafio em estar numa delas, por mais linda que seja, sem a Amazon, então…
A dificuldade maior é que até as melhores coisas se tornam um tédio, ilha deserta, então, pode dar uma depressão sem fim, sem um mínimo remedinho à vista, e os muito hábeis inventariam um placebo feito de areia e concha, nem de longe parecido com aqueles que viciam. Outros urrariam sobre as pedras, muito loucos, com frio e fome.
Alguns levariam bananas, mas qual delas? Maçã, nanica ou prata? Ouro, bananinha ouro.
Já repararam que nessas ilhas, as pessoas que lá arribam, como Robinson Crusoé e tantas outras, começam logo a imitar a civilização, e o perigo é que antes que nos salvem já estejamos na barraquinha de sapé, com mesa de quatro pernas, vela, trançado de bambu, comendo de colher, vestidos de pareô? Uma falta de criatividade, tínhamos mais é que inventar um mundo novo, novíssimo, para evitar os perrengues que sofremos aqui.
É, mas para nosso alívio, e para nos livrarmos do pesadelo da ilha, sempre se pode tomar um táxi."

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