Foto: Filipe Araújo/ Estadão |
Tá tudo no jornal O Estadão de hoje, sobre o evento Paladar Cozinha do Brasil. E algumas coisas mais, como receitas, ingredientes, fatos, vídeos e fotos, lá no blog do Paladar. Como este texto da Cíntia Bertolino falando de nossa aula.
Um doce, nem tão doce assim
TEXTO: CÍNTIA BERTOLINO, ESPECIAL PARA O ESTADO
O título da aula comandada por Ana Soares, Mara Salles e Neide Rigo não é exagero. Ao longo das mais de duas horas da aula Investigação Doce, o que se viu foi um mergulho, em profundidade, na tradição doceira brasileira. Uma tradição pouco conhecida, em que o açúcar, vejam só, não é o sabor dominante.
Para manter a tradição do brinde de boas-vindas, o trio abriu os trabalhos de sua sexta participação no Paladar – Cozinha do Brasil servindo uma dose de paiauaru, bebida de origem indígena. O paiauaru, este quase trava-língua, é feito com abacaxi fervido e fermentado por cerca de cinco dias. A doçura suave casou muito bem com o frisante involuntário. É que antes de envasar o paiauaru, Neide Rigo acrescentou caldo de cana-de-açúcar e conseguiu uma segunda fermentação. Um método champenoise da floresta. Normalmente, o caldo de cana é acrescentado, mas a bebida não é colocada em vidro hermeticamente tampado.
Instigadas pelo tema da aula, elas pesquisaram a origem, o gosto por um dulçor tão pronunciado, que parece ter nascido com o Brasil. Nas investigações descobriram o fermentado. As preparações com farinhas, como a puba, cuja leve acidez ajuda a contrabalançar o doce. “A fermentação adiciona um sabor novo ao prato, tira aquele sabor primário do açúcar”, contou Mara Salles.
A surpresa foi justamente essa. Descobrir novos mistérios que andavam soterrados sob montanhas de açúcar. Dentre os tantos pratos e ideias apresentadas (quem já viu uma aula do trio sabe o turbilhão novidadeiro que é), o pudim negro. Servido com farinha de mandioca fina, esse manjar preparado por Ana Soares, feito com castanha de caju, gergelim, rapadura, leite gordo, especiarias e morcela (o chouriço com sangue de porco), é doce, mas também tem uma pontinha salgada. Untuoso, avivou um gosto que parecia perdido na memória.
Inspiradas por Câmara Cascudo, pela confluência das comidas indígena, portuguesa e africana, pouco a pouco foram surgindo os bolos de puba, tabuleiros de adoçados (mandioquinha, abobrinha assadas), com melaço a gosto, o aberém, doce típico de Goiás, melaço de frutas...
Entre experiências explosivas (fermentar pode dar nisso), algumas malcheirosas, elas relevaram a perplexidade diante do convite para tratar de um assunto inesperado: “Nosso gosto favorito não é o doce. Preferimos o salgado, o ácido, o amargo. Foi um desafio superar um sabor menos apreciado”, confidenciou Mara. “O doce que a gente gosta não é tão doce assim. Não é tão fácil e rápido assim”, completou Neide.
Para encerrar uma apresentação pontuada por poesia, um brinde. Com o açúcar da cana, é claro. E um viva à cachaça.