Se tem um cheiro que reconheço de longe, além daqueles das frutas ou dos meus perfumes preferidos, é o de BHC ou hexaclorobenzeno de cloro, porque faz parte das minhas memórias afetivas, por mais esquisito que isto possa lhe parecer. Era o cheiro do paiol onde brincava, durante as férias, com os primos no sítio dos nossos avós no Paraná e onde era depositado o agrotóxico usado na cultura do algodão. Durante o restante do ano, tudo o que me fazia lembrar o sítio era bom e pronto, dos barracos de favela com as tábuas branqueadas pela chuva ao cheiro do estábulo e estrume, do perfume das folhas úmidas que margeavam o córrego ao fedor do BHC do paiol. Felizmente o produto cancerígeno foi proibido em 1985 quando meus avós já não estavam mais no sítio e eu já tinha noção do seu perigo. Aí a associação positiva mudou de lado automaticamente. Certamente muitos agricultores ainda continuaram usando o agrotóxico na ilegalidade ou produtos importados similares. Mas o que isto tem a ver com a pera? É que na última vez que comi uma pera importada foi o cheiro e gosto de BHC que senti. E ele não estava na casca da fruta e sim lá no miolo, junto às sementes, entranhado na polpa e concentrado no cerne.
Fiquei com medo e evito peras e maçãs viajadas desde então. Isto tudo me veio à lembrança quando vi aquela cesta de frutas no refeitório do Terra Madre, montado para atender aos participantes convidados. A comida era deliciosa (só não gostei de um hambúrguer num dos dias), sempre muito fresca. Eram centenas de pessoas que comiam ali todos os dias sem congestionamentos. Iam abrindo outras praças de servir conforme o horário e o número de pessoas que iam chegando. De sobremesa, sempre havia tortas doces, que não provei embora parecessem apetitosas, e também uma grande cesta de frutas. Peguei uma pera no primeiro dia, sem muita fé. Provei, parei a conversa e prestei atenção no sabor da fruta. Era tão gostosa que não consegui me concentrar em mais nada enquanto não terminei e peguei outra. E depois outra. Foram três neste primeiro dia e repeti a dose todos os dias (sorte, muita gente preferia os doces). E ainda passamos, Ana Soares, Mara Salles e eu, no Eataly e compramos uma caixa delas para deixar no quarto do hotel. Não sabia que peras não viajadas e comidas na estação delas podiam ser tão boas. É como comer açaí fresco na Ilha do Marajó, recém colhido, que em nada se parece com o açaí terroso que comemos em São Paulo.
A pera Abate, como é conhecida na Itália, começa a aparecer no mercado no final do verão e está em plena safra no outono. O nome deriva do Abade francês, Abbé Fetel, que desenvolveu a cultivar em 1866. Depois de maduras elas amolecem rapidamente. As que comi eram super firmes por fora e, de tanto comer peras duras e sem gosto, até fiquei desconfiada à primeira mordida, mas a polpa úmida, perfumada, macia e super doce logo desfez o preconceito. A doçura vem do fato de ela ser muito mais rica em frutose que as outras, além de fibras, vitaminas, ácido cítrico e málico, como as demais variedades.
Os italianos gostam desta pera, e de tantas outras variedades de pera gostosas que há por lá, com queijo pecorino (de preferência o toscano ou sardo, menos doce que o romano). Tanto, que há um ditado: Non far sapere al contadino quanto é buona la pera col pecorino. Isto quer dizer que se o camponês fica sabendo o quanto é bom comer pera com pecorino, não sobra fruta para os gulosos que conhecem o sucesso da combinação.
Imagens do refeitório do Terra Madre, (o grande evento do Slow Food), que aconteceu em Turim, no fim de outubro. Água fresca na mesa, frutas à vontade, muita salada verde e de grãos e massas boas. E queijos, azeites, tortas. Pratos e talheres, todos biodegradáveis.