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Tucumã. Coluna do Paladar, edição de 17 de janeiro de 2019

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A coluna da última edição do caderno Paladar está no jornal impresso de quinta-feira e agora no site do caderno. Pra não perder, colo aqui também. 

TUCUMà

Não guardo de minha infância nenhuma memória afetiva relacionada ao tucumã e imagino que boa parte dos que me leem também não. Diferente, portanto, de crianças e adultos que conheci em Lábrea, no Sul do Amazonas, onde estive neste último mês. Por ali, em plena safra, ele reinava em toda parte - nas bancas do mercado municipal, nas quitandas, no chão das roças ao redor das palmeiras e até no comércio improvisado em calçadas pelos moradores. Nos sorrisos infantis, boquinhas amarelas de tanto comer tucumã descascado no dente e muita história pra contar. Não há quem não goste naquele canto da Amazônia. Come-se com farinha, companhando de café, no beiju de massa ou na tapioca.

Para mim, foi sabor adquirido mais tarde no auge da maturidade durante uma viagem à Ilha do Marajó. Só anos depois me deparei com o fruto na cidade de Manaus. No Mercado, sacas pesadas de tucumãs carnudos adornavam bancas de iguarias locais e saquinhos com a polpa já beneficiada, isto é, tirada em lascas, podem ser encontrados em pontos variados pela cidade e a vantagem é que pode comprar e já sair comendo sem precisar cozinhar, como é o caso do coquinho da pupunha.

Há duas espécies conhecidas por tucumã, ambas pertencentes ao gênero Astrocaryum. Em Manaus e arredores predomina a espécie A. aculeatum ou tucumã-do-amazonas, nativa das terras firmes da Amazônia incluindo a porção peruana, colombiana, venezuelana e das Guianas. No Brasil, está presente em toda Amazônia ocidental indo até o oeste do Pará, Mato Grosso e Roraima.

Palmeira de um só caule cheio de espinhos escuros e grandes dispostos em anéis, ela tem frutos com polpa mais carnuda que o tucumã-do-pará (A.vulgare), que cresce em touceira e que tem provavelmente o Pará como centro de dispersão, ocorrendo também na Guiana Francesa e Suriname. Ambos têm usos parecidos, com algumas particularidades.

Nas ruas de Manaus desde a década de 1990, o sanduíche popular “x-caboquinho” é o tipo de fast food que cativa manauaras e turistas pela simplicidade e delícia. Trata-se de um irresistível sanduíche com recheio de lascas de tucumã e queijo de coalho. Estas lascas são retiradas, depois de se descascar o coquinho, rodeando o caroço como se descascasse uma laranja. Não sei se a comparação se confirma, mas senti que o tucumã está pra Manaus como o açaí está para Belém. O x-caboquinho está por toda parte e pode ser incrementado com banana-da-terra frita. Já em Lábrea, o mais comum é a versão clássica, com tapioca em vez de pão – irresistível. 

Numa das vezes em que estive no Marajó, estava comendo tapioca com minha amiga Jerônima Brito, dona da Fazenda São Jerônimo, junto ao Mercado, quando uma moça se aproximou me oferecendo óleo de bicho numa garrafinha de plástico. Tinha acabado de tirar, dizia. Jerônima, marajoara experiente, quis abrir e cheirar a gordura feita do bicho do tucumã antes de dar o veredito: pode comprar, tá excelente. Comprei, claro, e fiquei tão encantada com o perfume, uma mistura de ghee e coco, que quis saber como era feito na prática.

Chegando à fazenda, fomos para baixo de um tucumanzeiro conferir os coquinhos secos caídos da safra anterior. Jerônima ensinou: escolha coquinhos com um furinho bem pequeno, sinal que tinha recheio de bicho – este era o bom. Se o buraco fosse maior significava que a larva já tinha comido toda a amêndoa, crescido e saído pra ser besouro na vida. Juntamos alguns com furos pequenos e fui quebrando entre duas pedras, cuidando para não esmagar a criatura. Mais errei que acertei, ora lançando coquinhos ao longe que escorregavam na pedra, ora achatando a larva, sem falar nos falsos diagnósticos baseados no tamanho do furo. Mas um funcionário da fazenda chegou para ajudar e com um facão abriu os coquinhos duros com delicadeza e alto índice de acerto, deixando os bichos intactos. São branquinhos, roliços, engordados com o puro coco do tucumã – muito duro, por sinal. Jerônima agora assumiu a função de levar os bichos ao fogo. Com o calor, foram soltando um óleo clarinho e perfumado, com sabor amendoado. Estas larvas podem ser comidas cruas e vivas tais as ostras. Mas, depois de fritas – e até provei – são gostosas e crocantes como torresmos, pra comer com farinha. A gordura que restou na frigideira era farta e pode ser usada para cozinhar ou como remédio para muitos males. Era gordura assim que se usava antigamente para cozinhar, diz Dona Jerônima. De fato, antes do óleo de soja e derivados de petróleo, os óleos de cozinha e combustíveis eram extraídos de várias espécies oleaginosas, animais ou vegetais. Era óleo de gema de tartaruga e de tracajá, de peixe boi, de frutos de palmeiras e bichos que se alimentam deles – morotó de licuri, coró do butiazeiro, gongos de babaçu e tantas outras larvas de besouro que se alimentam Exclusivamente de amêndoas de coquinhos e por isto são ótimas fontes de óleo de ótima qualidade.

Com a polpa, Dona Jerônima faz vinho de tucumã para comer com farinha. Basta tirar as lascas e diluir com água – no pilão ou no liquidificador – e passar por peneira. Este é o vinho que se come com farinha de mandioca puba. Outro uso para este vinho é no preparo da canhapira, que Jerônima comia quando era criança e quase não se vê mais. Era simplesmente carne de caça cozida no vinho de tucumã. Atualmente ela faz com outras carnes como as de ave, de porco ou búfalo. Outra forma de preparo no Marajó, segundo Jerônima, é passar os pedacinhos de polpa na máquina de moer e triturar como carne moída para fazer sanduíches e tortas. Tem ainda o refresco de tucumã e para isto Jerônima tem uma dica: para evitar que a polpa batida com água fique viscosa demais, basta bater junto uma goiabinha verde – é como tirar baba de quiabo. Depois é só peneirar, adoçar a gosto e servir bem gelado. Mas o aproveitamento da espécie não se restringe à polpa deliciosa. Ela pode ser explorada ou cultivada também pelo palmito, pela madeira, pelo caroço para fazer biojóias, para óleo da polpa e da sementes, pela fibra para a confecção de redes e cordas e muitos outros usos.

Enfim, voltando à polpa de tucumã, é bom que se saiba que é uma iguaria amazônica que teria tudo para ser o novo açaí do mercado nacional e internacional, mas o deixemos para aqueles que têm com ele suas histórias e memórias, pois a demanda ainda é maior que a oferta. Vale lembrar que o tucumã poderia estar na merenda das escolas amazônicas como um alimento nutritivo com fortes laços identitários com a cultura local, mas infelizmente isto ainda está longe de ser uma realidade. Mais x-caboquinho ou tapiocas com castanhas e tucumã e menos bolachas industrializadas seria um sonho de merenda que fortaleceria o mercado local e ajudaria a manter a floresta em pé, já que a maior parte do tucumã consumido provém do extrativismo florestal. Já para aqueles que não conhecem e estão loucos para provar, e eu dou toda a razão, sugiro que vivenciem o tucumã em seu território. Fiquemos com nossas pitangas, uvaias e ubajaís da Mata Atlântica - falo aos que como eu estão em São Paulo e arredores - e viajemos para nos encantar com tucumãs e outras preciosidades amazônicas. Um pequeno pacote na bagagem de volta não trará
desequilíbrio ao voo nem a ninguém. Traga, portanto, ao menos alguns coquinhos para fazer uma canhapira.



Canhapira – ensinada por Jerônima Brito, da Fazenda São Jerônimo
(Soure, Ilha do Marajó – PA)

1 pedaço de pernil de porco com cerca de 1,5 kg
2 colheres (chá) de sal
1 pitada de pimenta-do-reino
2 dentes de alho socados
3 colheres (sopa) de suco de limão
2 colheres (sopa) de óleo
2 xícaras de vinho de tucumã (lascas de tucumã batidas com água suficiente
para fazer um suco que deve ser peneirado)
Folhas de ervas – cipó de alho ou manjericão a gosto

Tempere o pernil com sal, pimenta-do-reino, alho e suco de limão. Coloque dentro de uma vasilha com tampa e deixe pegando o tempero na geladeira, de um dia para outro. Numa panela, refogue o pernil no óleo, cubra com água quente e deixe cozinhar em fogo baixo, repondo a água se for preciso, até a carne ficar macia e a água secar. Deixe dourar dos dois lados e corte a carne em pedaços. Despeje o vinho de tucumã e as ervas que for usar e deixe cozinhar em fogo baixo por alguns minutos para incorporar os sabores. Prove o sal e corrija, se necessário.

Rende: 6 porções

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