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Dona Olga se foi

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Ultimamente ela cismou de implicar com meu costume de chamá-la de Dona Orga. Não sou mãe, não, é? E eu teimava com o Dona Orga. Seu nome é lindo, Olga, mas ela gostava de se apresentar como Dona Orga, bem acaipirado. E eu gostava do Dona, tratamento de respeito meio jocoso.

Se você clicar aí do lado no campo de busca "dona Olga", vai ver o tanto de receita que ela nos deixou. Queria reunir tudo num livrinho virtual - vamos ver se reúno forças.

O coração dela veio fraquejando desde que descobriu que tinha doença de chagas. Colocou marcapasso há pouco tempo mas não adiantou. Era um coração grande como só ela sabia ter. Foi fraquejando, fraquejando e parou de bater de repente enquanto escovava os dentes. Foi como ela gostaria que fosse. Que não precisasse ficar definhando e sofrendo no leito de um hospital, que ninguém precisasse limpá-la, não queria dar trabalho. Eu queria vê-la velhinha, de cabelos bem branquinhos, mas a gente não manda nada neste sopro de vida.  Ela gostava de flores e não tinha medo da morte. Estava no hospital pra fazer uns exames porque estava meio enjoada. Podia ser novamente o fígado prejudicado pelo coração fraco. Mas estava falante. No mesmo dia em que se foi disse para minha irmã que a gente era boba de ter medo da morte, que ela não tinha medo não, estava preparada para quando chegasse a hora. E chegou duas horas depois. Hoje tem sete dias.  Tanto não queria dar trabalho que já tinha escolhido o cemitério-parque onde queria ficar. É lindo, cheio de agapantos floridos e extenso gramado. Visitou o lugar várias vezes neste ano. Ia lá só passear e admirar e tinha plano todo pago já. Não precisamos nos preocupar com nada, apenas com a despedida sofrida.

Está sendo muito difícil, mas vou lidando com a dor como ela lidava - resolvendo coisas, cozinhando, limpando gavetas, podando o jardim, alimentando os bichos, brincando com as crianças.  Trabalhando incansavelmente, enfim, sem dar muito espaço para a auto-piedade. Que fiquem as boas lembranças, a saudade. O desânimo, não.

Lamento apenas não ter aprendido mais com ela com toda sua brejeirice e bondade. Os bichos de casa emudeceram, amuaram. As crianças da rua ficaram tristes e choraram - ela adorava crianças, dava presentes e bolachas com chá. A bisnetinha Isabelle pressentiu e soluçou na hora da morte sem saber o que estava acontecendo a alguns quilômetros de distância. Meu pai, companheiro de 58 anos, ainda não sabe o que é a vida sem ela, mas haverá de descobrir.

O blog, eu sei, fica a partir de agora mais pobre sem sua presença, sem suas receitas. Mas vou procurar cuidar das relações como ela cuidava, ser uma amiga mais dedicada, e cozinhar com todo o amor que ela tinha - cozinhar pra ela era coisa séria que exigia dedicação, capricho, cozinha limpa, avental na cintura, ingredientes frescos. Nunca comi uma comida ruim que ela tenha feito. Começava o almoço logo cedo, tudo planejado, sem pressa - nada de descongelar carne debaixo da água, usar salsinha de geladeira, preciosidades assim.

Teria um livro pra falar dela, mas por enquanto é só o que consigo sem que afogar em lágrimas e ao mesmo tempo informar os leitores que acompanham o Come-se e a conheceram pelo seu arroz doce, pelo porco de lata, pelo frango caipira, o pato, a polenta, a canjiquinha, a salada de quiabo com molho de feijão, o chuchu refogado, o jiquiri, a compota de pêssego verde, as rosquinhas de nata, o bolinho de chuva salgado com pimenta cambuci, as favas, a geleia de mocotó, a gelatina de tangerina e tanta coisa boa.





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