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Coração de bananeira, mangará. Coluna do caderno Paladar. Edição de 05 de maio de 2016

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Hoje estou voltando de Uauá e já tem coluna Nhac no caderno Paladar. Veja lá no blog do caderno, no Estadão impresso e também aqui. 


CORAÇÃO DE BANANEIRA

Lá em Itabirito, na venda do Roninho, sempre tem um punhado de mangará fresco apanhado há pouco envolvido em seu manto roxo descansando num caixote. É que mineiros daquela região ao redor de Belo Horizonte ainda tem apreço pela iguaria. É consumido em outras partes do país, como comida ou remédio, mas em pontos esparsos.

Para quem sabe lidar com ele, é um prato cheio que sustenta a família e imita o palmito além de dar um prazer danado aquele amarguinho de guariroba que ele tem.  É o que dizem as cozinheiras que têm intimidade com os assuntos do coração. Aliás, dizem por aí que pobre o chama de imbigo com orgulho e o rico, de coração com soberba. Já umbigo é pra quem se mete a querer falar como gente chique.   Mas, não importa a parte anatômica animal que o nomeia popularmente nem o nível econômico de quem o aprecia, o que vale é que a estrutura floral cordiforme que também responde por bogó é democrática, acessível e deliciosa.

Todo mundo já deve ter visto ao menos em foto este lustre de pétalas cor púrpura por fora e o avesso vermelho brilhante, às vezes revelando as florezinhas amarelas como pingentes enfileirados,  e que continua umbilicalmente ligado ao cacho-mãe a menos que seja extirpado. Portanto, não estou falando de nenhum ingrediente desconhecido, mas apenas negligenciado pela maioria das pessoas na república das bananas, sem nenhum tom pejorativo aqui – ao contrário, sortudos nós que, yes, temos banana e coração.  

Os frutos, a gente nasce comendo, mas o coração só experimentei depois de adulta e os preparos são sempre meio mineiros, bem temperados com alho, cebola, pimenta, pimentão, cheiro verde, como recheio de pastel de angu ou de buraco-quente - colocado no meio do pão francês, e ainda combinado com  costelinha de porco, carne moída, frango, peixe. De certa forma, quase os mesmos usos que o palmito, especialmente o guariroba.  

Depois conheci receitas de curries, com temperos asiáticos como leite de coco, pimentas, coentros.  No Sudeste Asiático  há inúmeros pratos com o ingrediente e  ainda separam o coração das flores masculinas que são limpas e preparadas à parte.  No Brasil o coração é limpo e fatiado inteiro incluindo estas flores.  As camadas externas e mais firmes protegem as pequenas pencas de flores masculinas, que são como miniaturas de bananas.  Livres dos pistilos e das sépalas ficam menos amargas e textura delicada.  

Foi, porém, um olhar estrangeiro não viciado e sem a menor familiaridade com o ingrediente que me fez levantar os olhos para além do meu próprio umbigo.  A amiga italiana Alessandra Sposetti se encantou com o formato do coração que conheceu em minha casa e levou para o Rio, onde ensina cozinha italiana. Disse que iria preparar como alcachofras já que a referência que ela tem é diferente da nossa, comedores de palmitos.   

Foi influenciada por alguma similaridade, o  roxo das brácteas duras, a ponta do cone fechada em pétalas e o nome coração. Mal sabia ela que além dessas características coincidentes,  havia ainda o amargor presente nas duas, mas muito mais discreta na alcachofra.  Claro, foi só preparar no azeite com vinho e alho para descobrir que o sabor estava mais para cardo, vegetal do mesmo gênero Cynara que a alcachofra, do qual se comem os talos bem mais amargos, mas deliciosos também.  

E aí foi minha a vez de experimentar. Ela me passou a receita de gobbi alla parmigiana tal qual a mama italiana Ada Guzzini faz na cidade de Maceratana, região de Marche, no centro da Itália, onde o cardo é conhecido como gobbo. Foi de Alessandra a ideia de usar queijo da Canastra duro em vez de parmesão.  Se você tiver oportunidade de preparar este prato, verá como a italiana foi certeira na intuição. O leite e o queijo trazem equilíbrio ao sabor final fazendo do amargor um item suave e desejável como o de alcachofra.

Antes disso, porém, é bom observar a sabedoria mineira: embora todos os mangarás de bananeiras sejam comestíveis, os menos amargos são os de banana-prata;  o coração deve ser retirado do cacho enquanto as bananas ainda estão verdes, pois à medida que os frutos amadurecem o coração vai endurecendo -  neste caso não há como endurecer sem perder a ternura. 
A retirada do coração é a conduta recomendada aos produtores de banana para que o cacho se desenvolva melhor.  Quando todas as flores femininas foram fecundadas e se viraram para cima, basta esperar de 15 a 20 dias para tirar e aproveitar o coração - é só torcer o pedúndulo perto dele para quebrá-lo .

As flores que restam entre as primeiras camadas roxas do coração são apenas as masculinas que não se desenvolvem em frutos, mas são deliciosas para comer.  As camadas externas mais duras são descartadas até chegar a um miolo claro e tenro. Aí, sim, corta-se em fatias diretamente sobre a bacia de água acidificada (4 colheres de sopa para cada litro de água). Aferventa-se duas vezes em água limpa, escorre-se e está pronto para ser usado como se fosse palmito ou alcachofras em conserva.

Aqui vale uma consideração. Enquanto brasileiros às vezes cortam o vegetal e o deixam imerso numa solução de bicarbonato e limão para evitar que escureça, asiáticos usam apenas limão.  O bicarbonato é usado para palmitos e brotos de bambu para eliminar o amargor e o limão ajuda a evitar o escurecimento da oxidação, mas um é alcalino e o outro, ácido. Sendo assim, penso que um anula o efeito do outro e, por isto, prefiro usar só o limão, para não escurecer, e aferventar duas vezes para eliminar o amargor. Funciona.

E,  se aproveitando da técnica asiática, podemos separar as flores em vez de picar tudo junto como se costuma fazer por aqui. E, mais ainda, podemos limpar uma a uma as flores, tirando pistilos e sépatas para que fique só a pétala, menos amarga. Refoga-se na manteiga ou azeite com gotas de limão e tem-se algo como cogumelos.

Então,  se você frequenta feira de produtores, peça o coração ao vendedor. Certamente não custará quase nada. E mesmo espalhados pela cidade há vários cachos de banana esperando uma alma boa que lhes arranque fora o umbigo que será devorado.  


Coração de banana gratinado com queijo

Meia xícara de suco de limão
2 corações de banana
2 xícaras de leite integral – ou mais, se precisar
Sal e pimenta-do-reino a gosto
4 colheres (sopa) de queijo duro ralado (pode ser Canastra, Serro, Salitre etc)

Prepare uma bacia com 2 litros de água e o suco de limão. Lave bem o coração, tire as camadas externas (descarte-as ou use como pratos), até chegar a um miolo claro. Separe as flores que for encontrando entre as camadas e jogue-as na água com limão. Se quiser usá-las separadamente, tire sépalas e pistilos (ficarão menos amargas) e reserve.

Corte o coração em fatias diretamente sobre a água. Deixe repousar por 2 horas ou mais e descarte a água. Escorra em peneira de plástico. Coloque o coração e as flores numa panela,  de preferência de barro ou aço inoxidável, cubra com água limpa e leve ao fogo para ferver. Ao lado deixe mais água aquecendo. Deixe ferver dois minutos, escorra e coloque mais água quente. Repita a fervura e escorra. Se achar que ainda está muito amargo, ferva mais uma vez. Escorra bem e passe tudo para uma frigideira que possa depois ir ao forno. Cubra com o leite,  tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto e deixe cozinhar em fogo baixo até o leite começar a secar e o coração ficar macio. Se for preciso, junte mais leite quente.  Cubra com o queijo ralado e leve ao forno bem quente para gratinar.  Sirva quente com pão ou como acompanhamento.

Rende: 4 porções



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