Descasque a mandioca, rale, esprema numa pano e use a massa |
Acabo de voltar do Marajó, por isto não postei a coluna ontem. Mas aqui está, como está também no blog do caderno Paladar.
Poderia dizer que estou simplesmente falando da mandioca tratada como for – ralada, cozida, frita, amassada. Ou que seja especificamente da mandioca ralada, como raladas podem ser cenouras, abóboras e beterrabas. Mas não, estou apertando ainda mais o tipiti porque o que o que fica ali é um ingrediente incrível, único, cheio de manhas e usado em todos os países onde a mandioca é nativa ou para onde foi levada. Trata-se da mandioca não só ralada, mas também espremida, vulgarmente conhecida como massa de mandioca. E não é de qualquer mandioca, mas daquela mansa, conhecida como aipim ou macaxeira, com baixos níveis de glicosídeos cianogênicos que são fartos na mandioca brava.
Na última coluna, falei da fécula, goma, polvilho ou tapioca, que é o amido usado para fazer beijus de tapioca extraído do líquido escorrido da mandioca ralada e espremida. É justamente deste resíduo que ficou retido no pano, no saco, no tipiti, ou em qualquer outro suporte usado para espremer a raiz ralada, que quero falar.
Para quem não sabe o que é tipiti, basta agora dizer que é um utensílio indígena em formato cilíndrico feito com talas de miriti trançadas de tal forma engenhosa que funciona como uma prensa quando ele puxado para baixo. Tradicionalmente feito com palhas vegetais, hoje já é encontrado em plástico preto, totalmente desprovido de graça. Cestos achatados de fibras vegetais ou sacos de aniagem também são usados como o mesmo fim nas casas de farinha, porém são empilhados e prensados lentamente. A massa prensada na maioria das vezes é usada para fazer farinha – é só peneirar para desfazer os torrões e assar, sem parar de mexer. Mas uma parte geralmente tem destino doméstico ou é usada na própria casa de farinha para fazer beijus. Nas casas, engrossa mingau, faz sopa, bolos e cuscuz, só pra ficarmos nos estilos mais comuns.
Entre os índios, porém, o grande uso da massa de mandioca é nos beijus e, para se aprofundar neles, recomendo a leitura do livro “Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro”, organizado por Luiza Garnelo e Gildo Barreto Baré e publicado pela Fiocruz. São apresentados ali vários tipos de beijus feitos com este ingrediente. Os preparos são minuciosos, com técnicas complexas e misturas calculadas para o resultado que se quer.
Não tem esta de dizer que mandioca é um ingrediente vulgar e pobre, como relatavam os escritores viajantes que primeiro a descreveram. É, sim, nossa raiz comum e mais desconhecida. Desconhecemos o léxico, os processos e suas infinitas possibilidades na cozinha, mesmo com o grande legado indígena que infelizmente não atingiu a todos.
Voltando aos beijus do livro, entre as variações, a massa pode ser misturada com a goma fresca, com goma já assada e com a massa puba ou mandioca mole, como se diz, que é aquela deixada por vários dias na água para fermentar e amolecer. Temperam-se os beijus com castanhas, formigas, caroço de umari e com as ideias que vão nascendo em nós à medida que avançamos na leitura. Os beijus podem ser ainda assados mais finos ou grossos, embrulhados em folha de sororoca ou de bananeira, cozidos no forno de farinha ou depois secos ao sol. São beijuxicas, beijus secos, beijus molhados, marapatás, beijus lisos, beijus crespos, marapatás, curadás e tantos outros de norte a sul, com nomes locais a cada variação de formato, técnica ou tempero.
Em Santa Catarina, a massa é usada para fazer bijajica, um tipo de cuscuz doce que leva amendoim, açúcar mascavo e cravo, e também um cuscuz com massa, açúcar e fubá que depois de cozido é fatiado e assado para ficar crocante como um biscoito – e que continua se chamando cuscuz.
Não vou dizer que é ingrediente simples de se ter em casa porque ninguém tem mais disposição, tempo ou espaço para ficar ralando mandioca. Se bem que é um bom exercício para firmar o muque e definir o abdômen, que hoje todo mundo quer. Mas os equipamentos modernos também podem ajudar a trazermos para perto a sabedoria ancestral no trato da raiz.
Para quem tem um processador de alimentos, é só ralar e espremer num pano. Se você tem por perto um feirante que venda mandioca descascada ou a massa pronta, tanto melhor.
Já indiquei o baiano Manuel (Tel. 11 – 94661-5219) para tanta gente, que ele agora vende a massa até para quem vem de outra cidade buscar em sua casa, onde tem ralador elétrico e prensa. Na feira, vende pacotes de meio quilo, cujo rótulo é a recomendação de uma receita de bolo com coco - infalível, diga-se. Do beiju, ele não sabia. Além dele, já vi por aí vendedores ambulantes empurrando carriolas de construção cheias de mandioca e a tal da massa. Um conforto comprá-la assim, pois ela pode durar dias na geladeira – mesmo que fermente um pouco, tudo bem, é da natureza da mandioca, que parece ficar ainda melhor. E o bom é que congela super bem, caso se queira guardar por mais tempo.
Nunca vi por aqui o produto industrializado, mas bem que poderia ter. No Vietnam, nas Filipinas e em alguns outros países onde a mandioca está presente, a massa pode ser encontrada nos supermercados facilmente. Com ela é feita uma infinidade de doces e salgados, muitos deles tradicionalmente preparados com arroz glutinoso e adaptados para o uso da mandioca. Pichi-pichi, puto e suman são alguns doces filipinos feitos com a massa, só para citar os que já provei e que são feitos com ingredientes que também temos aqui.
Desde que não seja lavada com água, a massa é um produto rico em amido e fibras e quando é aquecida os grânulos gelatinizam e se aderem uns aos outros formando um bloco unido. Diferente da goma, que só tem o amido, na massa as fibras ajudam a manter uma textura mais granulosa, macia e elástica nos beijus, que ainda ganham uma superfície crocante.
Depois que você consegue fazer seus beijus tradicionais, só com a massa - e sal, se quiser -, começa a ter vontade de experimentar grudar ali outros ingredientes: sementes, castanhas ou amendoim triturados, folhas picadas e legumes ralados e espremidos. Foi o que fiz para ter os beijus coloridos. Faça um branco e depois invente os seus.
Rale finamente e esprema num pano 1 quilo de mandioca descascada. Descarte o líquido. Esmigalhe o que ficou no pano e passe por uma peneira grossa de fritura para a massa ficar bem soltinha. Ou compre esta massa já ralada e espremida se encontrar quem venda assim.
Tempere a massa com 1 colher (chá) de sal e peneire sobre uma frigideira sem untar, fazendo uma camada de 1 centímetro, mais ou menos. Leve ao fogo baixo e deixe cozinhar por cerca de 3 minutos. Vire e cozinhe do outro lado. Se quiser, pode tampar a frigideira para o beiju cozinhar por igual e ficar mais flexível. Uma omeleteira também serve.
Para variar o sabor , junte amendoim torrado e triturado ou castanhas picadas na proporção de mais ou menos 1 xícara para 500 g de massa.
Para os beijus coloridos, divida a massa em 4 partes. Junte 2 colheres (sopa) de beterraba ralada e espremida para o beiju vermelho; a mesma quantidade de cenoura ralada e espremida para o laranja; 2 colheres (sopa) de coco ralado para o branco e 4 colheres (sopa) de ora-pro-nobis finamente picado para o verde.
Em todos os casos, passe por peneira grossa deixando cair diretamente sobre a frigideira para que os beijus fiquem mais fofos.