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Banho no São Francisco com as merendeiras. Quer despedida melhor que
esta? |
Não sei por onde começar a falar dos dias vividos com as merendeiras do sertão da Bahia. Mas aos poucos vou destrinchando cada oficina, contando as preciosidades, fazendo considerações. Antes, é preciso que se diga que fui contratada pela Coopercuc (Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá), sobre a qual já tanto falei aqui no Come-se, para cumprir parte das ações de um projeto maior promovido pelo
Programa Semear chamado "Projeto Tecendo Elos na Comercialização da Agricultura Familiar do Sertão do São Francisco", realizado pela Coopercuc – em parceria com o Programa Semear. Minha parte foi promover as oficinas para merendeiras de escola pública de Uauá, Curaçá, Sobradinho e Euclides da Cunha. Em Uauá já havia dado a oficina e mostrei
aqui e
ali. Desta vez dei um Uauá oficina de apenas um dia sobre macaxeira para mulheres do clube de mães.
Foram dias de trabalho constante, mas valeu a pena. A oficina foi montada não só com o intuito de ensinar a cozinhar, a mostrar técnicas diferentes, mas também de sensibilizar merendeiras e nutricionistas para o valor de uma alimentação com produtos locais da agricultura familiar. Antes de botar as mãos na massa, conversamos, lemos o livro da Nina Horta sobre as merendeiras (Vamos Comer, editado pelo Ministério da Educação alguns anos atrás e que deveria estar nas prateleiras de todas as escolas públicas), falamos de comida de família, de comida de alma, de ingredientes que estão desaparecendo, de crianças, do gosto de cozinhar e das dificuldades nas cozinhas das escolas.
As merendeiras são divertidas, animadas, mas algumas chegaram meio reticentes já resmungando. No final todas saiam animadas por terem tido oportunidade de botar pra fora aquilo que estava entalado na garganta e ainda receber alguma coisa em troca. A falta de estrutura da cozinha, o excesso de trabalho das que são além de merendeiras faxineiras, sobre o milagre que precisam fazer para alimentar 70 crianças com 400 g de leite em pó ou fazer render dois frangos para quase 300 crianças, da necessidade de se levar temperos de casa para não dar às crianças carne de soja desbotada etc.
Falaram bastante, desabafaram e foi bom. Mas melhor ainda foi perceber que elas estavam ali se sentindo valorizadas e aproveitaram tudo o que podiam das oficinas. Levei receitas simples, com ingredientes facilmente encontrados nas cidades por onde passei. Embora tenhamos feito os mesmos pratos, uma coisa ou outra escapou ao controle e fizemos mudanças no meio do caminho. Usamos basicamente ingredientes de feiras, quitandas ou produtores locais. Nada com maioneses, cremes, leite condensado e cerejas. Não levei nada de São Paulo a não ser o jogo de cintura para enfrentar cozinhas nem sempre preparadas para abrigar oficinas com quase 30 mulheres. No fim deu tudo certo.
Não pensei que aprenderia tão mais sobre o sertão e no tão pouco tempo que fiquei em cada cidade. Foram só dois dias de oficina em cada lugar, mas saía com a cabeça cheia de conhecimento sobre as plantas, os costumes, os ingredientes. E é por isto que quanto mais a gente aprende, mais se dá conta de que não sabe nada. O que se pode dizer de geral sobre nordeste e nordestinos se mesmo em cidades tão próximas do sertão tudo pode ser tão diferente? Se acha que vinagre de umbu é ingrediente espalhado por toda a caatinga, engana-se. Só em Uauá se o conhece e se o encontra pra comprar - ainda assim, só nas feiras. Acha que sertanejo gosta de jiló? Em umas cidades, mais ou menos, em outras, odeiam.
Como observo muito as flores pequenas da Caatinga, ia notando como elas são diferentes nas quatro cidades por onde andei. Como as flores são as gentes, os ingredientes, as preferências.
Todas as oficinas foram ótimas, mas uma foi especial. No final das atividades em Curaçá (cidade à beira do Velho Chico, divisa com Pernambuco), as merendeiras me chamaram para entrar no Rio. Fomos de barco até uma pequena ilha, tomamos cerveja e nadamos no Rio São Francisco de roupa e tudo. Uma delícia foi este banho, não só porque refrescou o corpo depois de um dia trabalhando no intenso calor que fazia, mas também porque compartilhamos a mesma água e a mesma alegria. Recebi vários convites para voltar e passar as férias naquele paraíso. Estou tentada... A cidade é linda, preserva o casario colonial, tem teatro, grupo de teatro, ruas e calçadas largas e gente acolhedora (claro, as fragilidades devem estar um pouco mais escondidas).
Voltando à merenda, você sabe que hoje as escolas são obrigadas a gastar 30% do que recebem para a merenda com produtos da agricultura familiar, mas esta meta ainda está longe de ser alcançada. Há muita coisa errada por aí. O governo federal dá 30 centavos (veja bem, com este valor não é possível comprar nem um ovo ou um copo de leite) que deve ser complementado pelo município para uma refeição de qualidade para as crianças. Porém, o que acontece é que o município finge que não é com ele e as nutricionistas precisam se virar mesmo com estes 30 centavos para fazer um cardápio que quase nunca a merendeira consegue cumprir por falta de produto. Aí é que entra o papel delas como milagreiras. E dá-lhe carne de soja e suco de pozinho! Os municípios precisam fazer sua parte já.
Fora que raras escolas têm cantinas. As crianças não podem comer na sala de aula para não sujar, mas não têm sequer uma sombra onde possam se aquietar enquanto comem. Mesa e banco, então, são raras as escolas que têm. Vi alunos comendo embaixo de sol quente. Uma crueldade com nossas crianças e adolescentes.
Por enquanto, então, veja notícia que saiu no
Portal do Semear:
Para seguir o Programa Semear, veja a página no facebook:
Seguem algumas fotos:
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Ingredientes para as oficinas de Euclides da Cunha |
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Elas adoram aprender a cozinhar macarrão sem lavar a massa depois |
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Sopa gelada e refrescante de melancia |
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Sucos variados e inventados por elas |
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Tapiocas coloridas naturalmente e, claro, mais saudáveis |
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Animadas, em Curaçá |
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A toalha era a colcha que "emprestei" da cama da pousada |
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Elas capricharam e depois acharam bonita a mesa |
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Ingredientes locais - até a maçã é do Vale São Francisco |
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Merendeiras de Euclides da Cunha e o nutricionista |
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Isto não deu certo. No segundo dia a degustação foi mais organizada. |
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Em Sobradinho tivemos que rebolar para usar um fogão de duas bocas
que vazava gás. Isto desanimou um pouco. |
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Ainda assim, as comidas saíram estas maravilhas |
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Quem fez, apresenta e serve |
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Oficina para o clube de mães, em Uauá. |
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Era sobre macaxeira |
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Uma torta salgada com sardinhas e legumes foi inventada na hora e todos
gostaram |
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O lugar onde se come mais macarrão no mundo não é na Itália, é no sertão (lembrando que toda generalidade é burra). |
Depois vou mostrar todas as receitas que fizemos.