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Debulhado para secar mais antes de embalar |
Pensava em plantar muitos tipos de milho no sítio em Piracaia, mas um deles era essencial, o milho Joaquim, que batizei assim quando falo dele com minha família. Queria ter a semente que esteve com meu avô Joaquim desde que ele tinha 17 anos, segundo diz minha mãe, que também cultivou do mesmo milho enquanto teve sítio. Acontece que meus pais se mudaram de novo para a cidade e, desta vez, não carregaram junto as sementes. Logo no primeiro ano que compramos a chácara, tentei encontrar alguém na cidade de Fartura-SP que tivesse conservado a semente que meu pai distribuiu para alguns produtores conhecidos. Sem sucesso. No segundo ano pedi ajuda de uma amiga da família, Meire, que mora lá. Ela teve dificuldade mas
conseguiu duas espigas do milho Joaquim com um sitiante e me mandou por correio.
Pois bem, plantei (Carlos e Silvana, na verdade), colhi (em pessoa), debulhei (à distância) e embalei eu mesma. Não adubamos nem corrigimos a acidez da terra. Carlos simplesmente tirou a braquiária e plantou. Também não usamos nenhum defensivo. A rocinha foi pequena, suficiente para estas duas espigas. Como já ouvi dizer que os javalis andam ali à espreita, na próxima safra vou plantar tudo espalhado. Vai dar mais trabalho para colher, mas a quantidade continuará sendo pequena, só para o consumo, e os bichos, se chegarem, terão mais trabalho.
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O milho Joaquim, crioulo, sementes do avô |
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Pronto para colher |
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Recém-colhido |
Apenas duas espigas renderam 18 litros que distribuí em garrafas pets. A sorte (ou não) é que não tenho nenhum vizinho nas proximidades que plante milho. O eucalipto acabou com a roça de subsistência e da abundância. Muitos deixaram de plantar também por causa dos javalis que derrubam o milharal todo.
O vizinho mais próximo a plantar milho é meu próprio caseiro, cujo sítio da família está a três quilômetros de distância do nosso, mas também planta sementes crioulas. Portanto, a chance de este milho continuar sendo um verdadeiro crioulo não transgênico é grande, embora eu não possa garantir que não tenha sofrido algum cruzamento involuntário com algum milho comercial enquanto esteve em Fartura. Só sei que este é o milho do meu avô, isto no momento é o que importa. É claro, eu seria muito mais feliz se soubesse que seu dna continua imaculado, mas os transgênicos estão por toda parte como uma ameaça a estas variedades antigas.
Enquanto o milho é verde há muitas possibilidades, porém não se pode pensar muito, pois a temporada é rápida. A gente sabe lidar com o legume, mas não com o cereal depois de seco. É o milho seco, porém, que resistirá longo tempo no paiol e dará sustento durante todo o ano, até que venha a próxima safra. Sempre foi assim entre as populações rurais, pelo menos. O milho fresco é maravilhoso como ingrediente, mas é sazonal.
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Prestes a ser embalados |
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Prontos para o uso |
Quando me vi frente à frente com aqueles litros de milho, afinal plantei apenas para consumo próprio, tive a mesma sensação de quem recebe nas mãos um bebê sem estar preparada para isto, sem saber o que fazer com ele. Acontece que perdemos a intimidade com o ingrediente que agora só nos chega depois da transformação industrial. É difícil comprar milho inteiro para alimentação humana. Para galinha, a gente encontra.
E, contraditoriamente, o milho vem às nossas casas de uma forma ou de outra em grande parte do que comemos, seja como amido, xarope, farinhas, fubás, canjicas etc. E o pior é que perdemos o jeito antes mesmo de termos a chance de apresentá-lo aos nossos mais modernos equipamentos domésticos.
Claro que no passado triturar o milho e ainda livrá-lo do germe e da película era trabalho insano feito no pilão, em moinhos d´água, monjolos, e assim que foi possível comprar os produtos já processados ninguém mais quis saber de lidar com o milho em casa. Pena que isto aconteceu para muita gente antes das facilidades dos moedores de grãos manuais ou elétricos, do liquidificador, do processador. Na verdade, um moedor manual já resolve muita coisa (é lógico que agora meu sonho de consumo é a peça moedora para a batedeira kitchen aid, mas estou feliz com meu moedor de manivela). O conhecimento do processo de nixtamalização (já ensinei a fazer
aqui e
ali), comum na mesoamérica, também facilitaria grande parte do trabalho se a técnica fosse mais difundida por aqui - embora nem mexicanos fazem mais o processo em casa, afinal há farinhas prontas.
Bem, para conseguir usar os milhos que colhi e fazer jus à difícil busca do milho Joaquim, tive que lançar mão daquilo que aprendi com amigos. Foram as mexicanas Madelen e Maria quem me ensinaram tudo sobre nixtamalização, quando nos conhecemos no Senegal, e agora já fiz tantas vezes que me sinto um pouco íntima do processo. Então, tortillas com milho nixtamalizado foram os primeiros preparos desta safra. Os links são estes aí em cima.
O caseiro Carlos fez um pouco de canjica, mas não presenciei o trabalho no pilão, em que o milho demolhado foi socado coberto com palha, para não pular. Quando eu mesma fizer e/ou participar, conto tudo aqui.
A fuba
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Toste até os grãos ficarem crocantes como piruás, sem deixar queimar. Usei a pipoqueira com tampa, já que alguns grãos estouram feito pipocas |
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Simples assim: agora é só moer |
Porém, lembrei que um jeito fácil de processar este milho seco era fazer
a fuba, aquela farinha de milho torrado com sabor de pipoca que conheci com a Ana Rita Suassuna (já falei dela
aqui e
ali) Maria, minha faxineira que é pernambucana, provou da que tinha feito e ficou emocionada, saudosa por nunca mais ter comido. Aproveitei a presença e sabedoria dela e fizemos mais um pouco para ela levar. Ela me corrigiu o ponto de torrefação do milho - tem que ser bem devagar, em fogo baixíssimo, para secar sem queimar.
Farinha de milho sertaneja
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O milho fica de molho por uma noite ou pouco mais |
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O milho molhado é triturado, restando uma farinha úmida e solta |
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Passe por peneira para aproveitar para a farinha apenas os grãos fininhos |
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Simples também: agora é só secar numa frigideira em fogo baixo até que os grãos fiquem crocantes |
Lembrei ainda da
farinha de milho sertaneja (tomo a liberdade de batizá-la assim para não confundir com a
farinha de milho caipira, aquela de flocos) que tem sabor de raspa de polenta tostada ou de broa de milho, outro dos ensinamentos da Ana Rita Suassuna. Foi só deixar um tanto de milho de molho de um dia para outro, escorrer e triturar no moinho. O que sai triturado não é uma massa como no milho nixtamalizado, mas uma farinha úmida e solta. Ana Rita me ensinou a fazer e disse que a porção mais grossa poderia ser usada para fazer cuscuz. Pois da minha moeção, com ajuste para mais grosso, consegui ter pelo menos três porções para diferentes usos. Com o que peneirei finamente fiz a farinha, tostando em wok em fogo baixo, sem parar de mexer, por 10 minutos. A gente sabe que está pronto porque os grânulos ficam crocantes.
Esta farinha é tão gostosa, mas tão gostosa, que se você provar nunca mais vai querer comer sucrilhos. E a fuba te fará esquecer de vez aquelas ditas farinhas lácteas. Você pode usá-las com a comida, com carne, feijão, ou junto com leite, café, iogurte, frutas.
Peneiragem e frações
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O que resta na peneira pode ser lavado para tirar as películas |
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O farelo sobe à superfície quando os grãos são cobertos com água. Basta ir tirando com uma colher-peneira |
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Com peneiras em diferentes granulações, você consegue produtos específicos. Em sentido horário: no canto superior esquerdo, a farinha, depois o farelo, a canjica maior, a canjica menor (juntei as duas depois) e os grânulos, um pouco mais grossos que a farinha, para cuscuz |
A parte mais grossa que sobrou, peneirei mais uma vez e assim tive duas granulometrias diferentes. Cada uma delas fui lavando e tirando as fibras de película que ficavam em suspensão. Tive assim grãos maiores para
canjiquinha e mais finos para o
cuscuz.
O cuscuz
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Os grânulos temperados com sal foram ajeitados sem apertar na cuscuzeira |
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Cozinharam por 10 minutos em três etapas |
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Foram umedecidos com água fria e passados por peneira |
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No fim, recebem uma colher pequena de manteiga e ficam soltinhos |
O cuscuz, fiz do jeito africano, como se faz cuscuz de semolina (dá pra prepará-lo também a partir do fubá, como já mostrei
aqui). Coloquei o triturado úmido na parte de cima da cuscuzeira forrada com pano. Deixei cozinhar por 10 minutos ou até começar a sair vapor da superfície, com os grãos bem grudados. Passei para uma bacia, fui esfarelando à medida em que juntava um pouco de água fria - numa quantidade que os grãos possam absorver, sem encharcar. Passei por peneira grossa e coloquei novamente os grãos na cuscuzeira. Deixei cozinhar mais 10 minutos e repeti o processo. Os grãos voltam para a cuscuzeira para cozinhar mais 10 minutos pela terceira vez. Porém, na bacia, em vez de água, juntei uma colherada de manteiga. E está pronto para servir. Se quiser guardar, passe por peneira e eles vão se conservar inchados e soltinhos. Aí, basta aquecer no vapor na hora de servir. Você nunca mais vai querer ouvir falar em floco, flocão, polentina, milharina.
Canjiquinha
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Separam-se os grãos do farelo |
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Misturei os dois tamanhos e cozinhei em água salgada. Cremosidade de risoto |
À canjiquinha já úmida, juntei o dobro do volume de água e levei ao fogo baixo, mexendo de vez em quando. Temperei com sal e deixei cozinhar por meia hora - os grãos devem estar macios (canjiquinha al dente, não, por favor). Juntei um pouco de manteiga e nhac. Se não fosse preparar na hora a canjiquinha, por estar molhada, teria congelado antes de cozinhar.
E se você não tem moedor de grãos, elétrico ou manual, tente o liquidificador que também dá certo (pelo menos para fazer a farinha e canjiquinha - amanhã falo da canjiquinha de liquidificador.
O resultado |
A farinha de milho sertaneja |
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E a fuba. Ambas vão para garrafas como as de mandioca |
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O cuscuz com legumes e sardinha como comi no Senegal (lá com arroz quebradinho) |
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A canjiquinha cremosa com couve. Hummmm, nhac! |
Amanhã mostro como fazer a canjiquinha no liquidificador.