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Artesanato para salvar nossos milhos

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Outro dia liguei para uma pequena fecularia na região de Piracaia para confirmar se a farinha de milho sem o tezinho no triângulo que eu havia comprado era realmente livre de transgênicos. O responsável disse, então, que a que eu tinha em mãos certamente era, mas que os próximos rótulos já trariam o tezinho, pois não estava mais conseguindo milho que não fosse transgênico para produzir a farinha. Deu uma tristeza. 

Alice com uma de suas peças 
Por outro lado, nunca pensei que a preservação dos nossos miolos crioulos pudesse estar nas mãos de artesãos. No Revelando São Paulo deste ano, encontrei no setor de artesanatos a Alice de Oliveira, uma jovem artesã e presidente da Cooperativa de Artesãos de Guapiara (Coopag). A cidade fica no interior de São Paulo e agrupa vários artesãos, a maioria mulher, que produzem peças utilitárias e decorativas a partir de fibras naturais. Até aí, nada demais, afinal fibras de bananeiras ou palhas de milho podem ser coloridas e eu nunca tinha parado para pensar de que forma isto era feito, se artificial ou naturalmente. Mas Alice me contou do esforço que fazem para preservar as variedades crioulas de milhos coloridos especialmente para o aproveitamento da palha.  Fiquei feliz. 

Palha densa

Palhas com cores naturais

Grãos coloridos e resistentes
Os milhos são lindos, vermelhos, pretos, laranjas, rajados, e as palhas, densas e coloridas.  Alice me explicou a importância dos milhos crioulos em relação aos melhorados e/ou transgênicos para o artesanato. Nossos milhos mais primitivos tinham uma camada de palha muito mais espessa, que era para proteger os grãos do ataque de bichos como roedores. Mais palha, mais artesanato. 

O milho plantado atualmente tem pouca proteção de palha. Com um pequeno rasgo se chega facilmente à espiga, o que não acontece com o milho crioulo. O que vale para o milho moderno é ter alta produtividade em grãos, com pouca palha - que tem coloração uniforme. Mas, além da quantidade de palha no milho crioulo, a diversidade de nuanças destas palhas é fundamental no estilo das peças tramadas para formar desenhos em tonalidades diferentes. Laranja, vinho, marrom, amarelo, são as cores que dão vida às peças. 

Agora, cestarias, artesanato, o que importam?  E quanto aos bichos, bem, pra que servem defensivos, afinal? Proteção natural deixou de importar. Um dia, quem sabe, quando todas as pragas forem resistentes a defensivos tóxicos, vamos voltar a dar valor às artimanhas da natureza. Por enquanto, o que se faz é ir destampando um santo para tampar outro, lutando para manter o frágil equilíbrio forjado ao longo de séculos de seleção natural, lidando agora com os efeitos colaterais.  Tudo para aumentar a produtividade.  A que custo e até quando?  A buva, por exemplo (por sinal, gostosa e erva apimentada), que infesta pastos e roças de milho, já não sucumbe aos herbicidas nas dosagens recomendadas,  exigindo uma carga maior, com impacto ambiental incalculável. Ao mesmo tempo, as abelhas, fundamentais na polinização das plantas alimentícias, grãos e frutos, estão sendo dizimadas rapidamente pelo excesso de agrotóxicos, entre outros fatores.  

Farinha feita com os milhos coloridos
Então, vamos ficar atentos e valorizar iniciativas como as de Alice que planta muitas variedades de milho crioulo até em terras arrendadas, incentiva outros artesãos, faz lindos vasos e cestas e ensina um ofício que vem de família. Veja o trabalho dela e da cooperativa no facebook.  Como guardiã de sementes, Alice conta que ali mesmo, no Revelando São Paulo, doou algumas espigas para índios participantes da feira - quiseram recuperar variedades que até eles já perderam. Bem, quanto ao milho plantado para o artesanato, algumas espigas viram farinha, deliciosa - ainda mais pela história que traz junto.  E uma ela me deu pra plantar - e já o fiz. 

Milho do meu avô
Ah, outra coisa que me deixou feliz recentemente é que consegui uma variedade de milho crioulo que vem do meu avô desde quando ela tinha 17 anos. Estava com meu pai que vendeu o sítio e não carregou a semente. Mas uma amiga, Meire, de Fartura, me ajudou a recuperar sementes para eu plantar em Piracaia - meu pai havia dado um pouco para um produtor local.  

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