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Insetos. Ou "Com uma farofinha... ", no caderno Aliás

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Saiu ontem, no caderno Aliás, do Estadão. E está lá no site do jornal: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,com-uma-farofinha,1033173,0.htm



Com uma farofinha...

Embora negue de pés juntos, o brasileiro é um papa-inseto vocacional. E basta alguém admitir que come içá para surgirem outros insetívoros

18 de maio de 2013 | 15h 59
Podemos até discordar da estratégia da FAO de combater a fome e prevenir catástrofes nutricionais estimulando o consumo de insetos, pois uma das saídas seriam ações para melhorar a distribuição de alimentos e evitar seu desperdício. Mas duas coisas são certas. Uma é que, involuntariamente, comemos insetos, ovos e larvas com certa frequência. Afinal, ainda que evitemos alimentos industrializados vermelhos à base de carmim, corante natural feito a partir de cochonilhas, é difícil fugir da proteína animal do bicho da goiaba e dos carunchos dos cereais, às vezes ainda na forma de ovos ou larvas. Outro dado é que o Brasil é essencialmente um papa-insetos, ainda que não o admita, pelo menos até agora.
O próprio documento da FAO cita o País usando referências do especialista baiano Eraldo Medeiros Costa Neto, que estima em 135 o número de espécies de insetos comestíveis por aqui. Diante de nossa biodiversidade e das quase 2 mil possibilidades mundo afora também mencionadas pelo relatório, é de se imaginar que esse número seja ainda maior.
O hábito indígena de comer insetos – sejam formigas nos vários estágios, larvas de abelhas, cupins, tenébrios, lagartas ou crisálidas – sobrevive, e podemos trazer do Alto Rio Negro deliciosas saúvas inteiras com tucupi e pimenta ou paneiros com seus abdomes moqueados. Ainda podemos ir à cidade de Silveiras, no Vale do Paraíba, para comer içás em restaurante popular. Mas mesmo nos bairros da cidade de São Paulo e arredores encontramos grandes formigueiros de saúvas cortadeiras, terror dos jardins, com o mesmo sabor de citronela do inseto amazônico.
O perfume cítrico característico dessa espécie, Atta sexdens, vem do feromônio produzido numa glândula mandibular. A substância tem várias funções, entre elas a de inibir o crescimento de micro-organismos outros que não o fungo desejável para a própria nutrição da colônia. Porém, apesar do apreciado sabor herbáceo na cabeça dessas formigas, o hábito disseminado por todo o Brasil é perseguir as fêmeas em revoada, chamadas de içás ou tanajuras, quando estão prenhes. É exatamente o abdome esférico, do tamanho de um grão de ervilha, que é dourado na própria gordura ou na banha de porco e comido como petisco crocante, puro ou com farinha. Uma mistura de torresmo com amendoim torrado, uma iguaria.
No entanto, tirando o exemplo do Vale do Paraíba e da Amazônia, onde há certo orgulho do alimento, pouca gente admite que come ou já tenha comido içá ou qualquer outro inseto. É hábito taxado como primitivo ou de pobre – exceção feita a quem viaja para o México, ou Tailândia, Japão, China e tantos outros países asiáticos, onde os insetos são vendidos na rua ou em lojas especializadas. Basta ao turista experimentar um deles, fotografar e postar na rede social como fato pitoresco e, pronto, está batizado. Passar a encarar os insetos como alimento nutritivo e saboroso do dia a dia, sem distinção de classe, é outra história.
No verão passado, por exemplo, quando consegui recolher um tanto de içá em Piracaia, cidade a 100 km de São Paulo, achei que só eu sabia que aquele inseto era comestível, que só eu tinha presenciado centenas de formigas gordas caindo do céu. Aos poucos, as pessoas foram revelando que também coletaram içás naquela tarde de domingo que anunciava chuva com trovoadas – mas só depois de eu dizer que já tinha provado a formiga até em restaurante e gostava muito. Não fosse assim, teriam negado até a morte.
Não é diferente o que acontece com os bichos de coco, de taquara, de tronco de palmeira. A larva do besouro Pachymerus nucleorum, por exemplo, cresce dentro da amêndoa do fruto de várias palmeiras, como o licuri, que produz coquinho adocicado e crocante. Essas larvas, que parecem confitadas em gordura de coco como uma síntese da polpa que as alimentou, são apreciadas em todo o Brasil, seja a que dá no butiá, no babaçu ou no buriti. Os nomes regionais variam conforme a planta e são geralmente repletos de "os": gongo, coró, fofó, boró, bigolô, gogolô. No interior do Maranhão, os gongos do coco babaçu fritos viram ingrediente para farofas ou são servidos com arroz. Mas é comida interna, familiar, de pertencimento. Vá querer compartilhar essa emoção...
O preconceito chegou com o colonizador, que encontrou aqui grandes dissonâncias de costumes e higiene em relação aos padrões europeus. Vide os termos pejorativos e de asco em relação aos hábitos alimentares dos índios nos relatos dos viajantes. Hoje sabemos o que nossos índios sempre souberam: que quase todos os insetos são comestíveis – grilos, lagartas sem pelo, larvas, crisálidas, cupins, abelhas, besouros. Estaríamos mais saudáveis e teríamos menos problemas ambientais se não comêssemos tanta carne e tantos camarões – que se alimentam de restos putrefatos do fundo do mar – e enxergássemos gafanhotos nutridos à base de folhas verdes como limpos e apetitosos camarões do campo.
* NEIDE RIGO É NUTRICIONISTA, COLUNISTA DO PALADAR E AUTORA DO BLOG COME-SE


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