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Caça aos cogumelos na Catalunha. Coluna do Paladar de 22 de novembro de 2012

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O texto sobre cogumelos está no Estadão de hoje e também no blog do Paladar
 

CAÇA AOS COGUMELOS NA CATALUNHA

Sou micófila assumida e me abre o apetite o simples perfume de mofo em madeira apodrecida ou do bolor de casa de praia fechada.  Caminhar  pela montanha com uma cestinha de palha numa das mãos e um cajado na outra fazia parte dos meus desejos desde que uma colega de faculdade alemã contava de suas façanhas coletando cogumelos no outono de sua terra natal. E olhe que alemães não parecem ser dos mais apreciadores de cogumelos.  Nem mesmo os espanhois são unânimes quanto a isto. É coisa pra bicho. Há até um ditado preconceituoso que diz  "las setas sólo las comen los catalanes y las cabras". Pois, de fato, entre os catalães, os cogumelos representam uma paixão nacional. E também para os bascos.
Minha viagem à Catalunha não foi programada e era para ser apenas uma espichada para rever amigos em Barcelona e conhecer um pouco da cidade depois de participar do Terra Madre, em Turim, na Itália. Mas calhou de ser tempo de cogumelos.  Eles estavam por todo canto, no supermercado da esquina, nos livros expostos na livraria, no Mercado da Boqueria e na mesa de meus amigos. Um dos jantares era composto de cogumelos variados ao forno com azeite e tomilho, que comi com gosto, com atenção aos rovellós, o rei de todos.  
Em Terrassa, cidade próxima à Barcelona, para onde se pode ir de trem, outros amigos me esperavam com uma surpresa. No dia seguinte haveria uma saída a um parque natural organizada pela prefeitura para coletar cogumelos, afinal estávamos em pleno festival que inclui aulas na praça, identificação dos cogumelos por micologistas, venda de vários tipos, brincadeira para crianças, menus específicos nos restaurantes locais e excursões para coleta.  As inscrições estavam encerradas, mas poderíamos arriscar, falar diretamente com o guia no dia seguinte e quem sabe ele nos aceitaria,  nos informou uma funcionária da prefeitura no sábado à noite. 
Claro, seria mais seguro irmos para Montserrat, que era a outra opção de passeio oferecida pelo casal de amigos. Mas não, insisti. O mosteiro e a montanha estarão sempre lá e quero muito visitá-los ainda que não seja desta vez, mas os cogumelos, não.  Precisa haver uma conjunção de fatores para que ocorram e o momento era todo favorável. Outono, uma boa chuva dias antes, tempo nublado mas não muito frio e o fato de eu estar ali. Não podia dar errado.
Acordamos cedinho no domingo de céu cinza e fomos sonolentos mas animados caminhando até o ônibus que esperava o grupo na praça. Mariângela preferiu ficar dormindo e nos esperar para o almoço, com um delicioso arroz de açafrão e camarão. Rui estava animadíssimo e preparou sacola na falta de cesta e um guarda-chuvas no lugar do cajado.  Explicamos para o motorista nossa situação de insistentes e ele repetiu o conselho da funcionária: quem sabe o guia não os aceita?   
Pois o guia Josep não só nos aceitou, como foi simpático e solícito o tempo todo, me chamando para mostrar espécies, posando o cogumelo para foto entre outras delicadezas.  Antes de seguirmos pelas trilhas pedregosas do Parque Natural de Sant Llorenç del Munt i l’Obac,paramos para uma pequena refeição energética para podermos enfrentar com disposição a subida à montanha. Não que fosse uma tarefa muito árdua, afinal o aclive é suave, podendo ser vencido com facilidade por gente de qualquer idade, mas faz parte do ritual. O restaurante La Pastora atende a catadores de cogumelos e ciclistas trilheiros especialmente, mas está aberto a quem quiser tomar um autêntico café da manhã montanhês. Duas grandes fatias de pão quentinhas, com tomate sucoso esfregado e azeite para encharcar, ladeadas por butifarras, que podiam ser da brancas, só com carne de porco, ou negras, com sangue. Na dúvida, Rui e eu pedimos as duas para dividir. E, por suposto, uma garrafa de vinho tinto da casa – simples, gelado, ácido, mas um vinho. Depois, uma xícara de café ou chá, afinal aquilo era um café da manhã.
Nossos companheiros de aventura eram dois homens e duas mulheres, todos muito motivados. Um dos homens,  muito entendido de cogumelos, trajava  roupa camuflada que ganhou da mulher – “já que gosta disto, que faça direito”, teria dito. Aliás, pude perceber, a mulher é a grande incentivadora dos caçadores de bolets, como mulher de pescador que espera o marido para limpar o peixe. Rui já tinha me contado que, numa coleta anterior, seus dois companheiros receberam várias ligações das mulheres perguntando sobre o andamento da empreita. Nesta expedição  não foi diferente. A mulher do moço mais novo ligou algumas vezes querendo saber como estava a cesta, se já tinha coletado alguns, que tipos, se daria para o almoço. Mariângela não ligou para o Rui nem para mim porque nós dois esquecemos celulares em casa. Mas não as sacolas e estávamos empenhados a enchê-la. O ideal é que se levem cestas, pois,  além de arejar os cogumelos coletados, facilita a dispersão dos esporos garantindo fartura para a próxima temporada. O cajado serve para afastar as folhas mas nunca para cavoucar e o canivete ajuda a cortar os cogumelos nos pés, sem precisar arrancá-los.
Logo na subida descobri que tenho bons olhos para perceber os cogumelos mimetizados entre folhas outonais, porém uma fosca bola de cristal para acertar os comestíveis.  Já o primeiro, grandão e carnudo, que encontrei era um tal de mataparents. A outro, ainda maior, chegaram a chamá-lo aos risos de mata-família-real,  já com intimidade com a brasileira.  Em compensação, encontrei uns três exemplares raros de pota de perdiu, que fica lilaz depois de cozido.  Encontramos muitos de um tipo amarelo que ninguém queria, não porque fosse tóxico, mas dava trabalho para preparar – tinha que tirar a película e uma esponja abaixo do chapéu, que são amargas. O restante solta muita água, mas é gostoso. É daqueles classificados como sem interesse gastronômico.  Ficamos com todos.  Já os rovellós, bicolores, rosa e verde, carnudos e saborosos, reconhecidos pela seiva cor de sangue que solta ao ser cortados (daí o nome Lactarius vinosus),  eram os mais disputados e também os meus preferidos desde que o provei em Barcelona.  Coletamos ainda outros tipos como os fredolicse uma espécie apimentada do gênero Russula– fiz um vinagrete picante usando apenas um pedaço do chapéu e comemos com presunto. É incrível, arde mesmo como pimenta, e não é tóxico. São não se pode usar muito, que estraga a comida. No risoto fica ótimo, me ensinou uma das moças.    
Na montanha,  passamos por ruínas milenares com restos de azulejos e poços de gelo incrustados na paisagem que inclui muitos ciprestes, medronheiros com frutos doces como morangos, além de alecrins, tomilhos e pegadas de javalis, que inspiram um jantar completo.  Mas nos contentamos com os cogumelos,  que crescem taludos e manchados como se tivessem a idade daquelas pedras. E só um raminho de tomilho perfumado para temperar. O ônibus nos deixou em frente à estação de trens e foi ali mesmo, de volta ao asfalto da realidade mundana, que somamos para depois dividir em partes iguais o resultado da coleta.
À noite limpamos e fatiamos os cogumelos e os preparamos com azeite, sal e tomilho, separadamente, para apreciar cada sensação. De companhia, apenas pão, vinho e presunto  ibérico. Todos deliciosos, os rovellós mais ainda, pois são densos, aromáticos, com consistência de carne macia. Agora, o prazer de coletá-los foi maior que o de comê-los.
Além de ser um passeio divertido e instrutivo, se o aventureiro não consegue encher a cesta,  tem a chance de passar na loja “La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa, e comprar um sortimento de cogumelos silvestres frescos, como fazem os pescadores de mentira. Lá você encontra também cogumelos secos e em conserva, silvestres e cultivados.  
Para terminar, descobri que a diferença entre espécies comestíveis e tóxicas às vezes está em um pequeno detalhe como a cor da seiva ou um determinado anel no chapéu. E,  para ter segurança,  não dá para se guiar apenas pelo desenho,  que pode mudar nas diversas fases - dependendo da idade, uma mesma espécie pode ter chapéu plano, côncavo, convexo, branco, rosa, roxo, uniforme, manchado.  Eu mesma já fotografei diversos cogumelos Brasil afora -  e nós temos muitos -, fiz curso onde disseram que não temos cogumelos mortais,  tenho guias de identificação, mas só coleto orelhas de pau frescas que conheço bem, ou quem sabe os de eucalipto, Ramaria flava, que cresce no Sul, pois se até catalães que aprendem sobre cogumelos no maternal morrem anualmente por acidentes ou tem seus fígados consumidos por toxinas, sorte nossa que já há pesquisadores estudando o assunto com afinco,  pois eu que não me arrisco. Enquanto  isto, ou fiquemos na cola de um guia experiente ou vamos de cestinha colher serralhas e catar içás, que, aliás, estamos em plena temporada.

Endereços úteis
Prefeitura de Terrassa, que organiza o festival: www.terrassa.cat
Loja “A màgia dels bolets”: www.mercatindependencia.com/parada.php?id=13

O café da manhã da montanha

O grupo
Cestinha da Rosa


Coleta coletiva
Cogumelo esponja, que ninguém quer, mas é gostoso - basta tirar
a espuma e a película

Rovelló

Pota de perdiu



Divisão no asfalto
Menu degustação sobre o pão - Rui e eu preparamos com o
tomilho que trouxemos da montanha 
Rovelló na casa da amiga Veronika, em Barcelona

Rovellós e rossinyons ao forno com azeite e tomilho, da Veronika
La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa

La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa





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