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Feijões: outros destinos. Coluna do Paladar. Edição de 28/03/2013

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Hoje o caderno Paladar é dedicado a bacalhau e batatas, mas tem também um pedaço pra coluna Nhac sobre feijão, que está reproduzido lá no blog do caderno: http://blogs.estadao.com.br/paladar/pure-de-feijao-por-que-nao. Reproduzo a versão completa, já que temos cá espaço de sobra pra textos e fotos, eba! 


Feijões de outro jeito

Minha primeira experiência glutônica, fiquei sabendo por outros, tão tenra era a idade, do tempo em que a família ainda não tinha geladeira. Era prática cozinhar feijão dia sim, dia não e, para não azedar, colocava-se a panela na parte mais fria da casa – dentro de vasilha bem tampada, embaixo do guarda-louca, sobre o cimentado frio. Pois alcancei o local engatinhando e fui encontrada ali, ajoelhada ao lado do caldeirão vazio, com as duas mãos, cara, boca, olhos e pés lambuzados de feijão frio. E o pior é que não passei mal.

Podemos até não admitir, mas já fomos um povo papa-feijão:  do arroz com feijão, do feijão com farinha, da feijoada. E ainda assim quase não encontramos receitas com os grãos nos livros, como se não houvesse nada a fazer com eles além do feijão tropeiro, da feijoada, do tutu, do baião de dois. O ensopado feijão de todo dia, então, é como se todo mundo soubesse fazer, como se fosse sempre uma coisa só. Porém, cada família vai adquirindo temperos próprios e não registrado nos livros de receita -  há quem o tempere com cebola e alho, só alho socado, toucinho fresco ou defumado, carne de fumeiro, courinho de porco, uns pedaços de orelha, um naco de carne seca, umas rodelas de lingüiça, pedaços de legumes, folhas de louro, coentro, salsinha, cebolinha e até tempero pronto. Tirando estabelecimentos populares, a maioria dos restaurantes também o ignora como se feijão fosse ingrediente menor.

O fato é que o IBGE já constatou que diminuímos o consumo de feijão. Nem bem exploramos o uso deste ingrediente e já vamos declinando. Por mim, daria mais atenção às nossas clássicas formas de consumo, mas também aos usos que fazem dele nossos vizinhos da América Latina.
Papa-feijão assumida, lembro do meu avô paranaense que, quando comia, engrossava seu feijão do prato com farinha de milho bem amarela e crocante, fazia capitão e entregava aos netos, que achavam mais divertido comer feijão em bolinhos sólidos com as mãos que com caldo,  no prato, de colher. A imagem do feijão cozido lentamente em fogão de lenha na panela de ferro completam a magia da lembrança, mas mesmo os grãos feitos em panela de pressão têm seu encanto. Aliás, sem a ajuda deste utensílio, indispensável para a economia de tempo e energia, o uso do feijão já seria coisa do passado. O chiado da panela de pressão começava logo cedo, antes de as crianças irem para a escola, e estava para o ambiente feminino e doméstico nos dias úteis como a voz do narrador de jogo de futebol no rádio de pilha longínquo estava para os homens nas calçadas aos domingos pela tarde.

Antes que os grãos cozidos com folhas de louro, ainda insossos e com líquido ralo, fossem jogados em outra panela com refogado de alho socado com sal e cozido mais tempo até engrossar o caldo, eu roubava um pouco deles num prato, polvilhava com sal e comia como se fossem pinhões ou amendoins cozidos. Era divino o sabor do feijão recém-cozido, íntegro. Um dia era feijão roxinho ou rosinha; no outro, canário;  às vezes, o jalo; o preto, só para feijoada e, por último, quase sempre, o carioquinha. Gostava de todos eles, assim, puros, sem adornos. Às vezes temperava sem preconceitos também com açúcar.

Minha mãe nunca ouviu dizer que alguns baianos comem feijão de leite (com leite de coco e açúcar) na Semana Santa, mas lhe contaram que japoneses comiam doce de feijão. Ninguém deu a receita de tsubu-annem falou que usam o feijão azuki no doce que recheia pãezinhos e pequenos bolos de arroz,  mas bastou saber que de feijão se faz doce para que ela transformasse os grãos cozidos e passados em peneira em delicioso doce em pasta, temperado com cravo e canela, como um doce de batata-doce com consistência de creme de castanha portuguesa. Era muito gostoso, um jeito de satisfazer as crianças com ingredientes baratos que tinha sempre em casa. Por isto, eu não achava estranho provar feijões com açúcar. 

Enquanto em casa o feijão imitava batata-doce já que não conhecíamos creme de castanhas, uma amiga me contou que a mãe húngara escalava o feijão tropical para se fingir de castanhas europeias no creme de marron temperado com rum e servido com chantilly, como comia em seu país.  E todo mundo adorava.  Sim, o doce de feijão lembra o de castanhas.

Se aqui o feijão é, assim, um grande imitador e mais consumido salgado, em grãos inteiros ou no máximo machucados, em vários outros países da América Latina (de onde o Phaseolus vulgarisé originário), o feijão é usado também na forma de purê. México, Peru, Costa Rica, Cuba, todos usam purê de feijão como ingrediente de doces ou salgados. Pode ser feito em casa, mas também é encontrado para se comprar, em lata. E variações de empanadas de platano,  por exemplo, doces e salgadas,  estão espalhadas por aí. A combinação de banana-da-terra (platano), o único ingrediente da massa, com feijão preto é imbatível.

Como em nossos mercados não encontramos purê enlatado, embora seja a coisa mais fácil do mundo deixar o feijão de molho e depois cozinhar em panela de pressão (e pode ainda ser congelado sem prejuízos), resolvi procurar alguma solução para abreviar o tempo do leitor. Comprei o feijão cozido e embalado a vácuo, mas só depois de provar percebi que já vinha com sal e temperos.   Para o recheio salgado, tudo bem, mas para o doce, não temos alternativa senão cozinhar os grãos.  A vantagem é que ainda temos muitos tipos de feijões Brasil afora, além do dominante carioquinha, e podemos ir fazendo variações sobre o mesmo tema. 

E só para lembrar, feijão é um alimento de fibra – solúvel e não solúvel, com percentual calórico comparável ao pão, baixo teor de gordura e alto teor de proteína (melhor aproveitada quando acompanhado de arroz e outros grãos), além das vitaminas, minerais e fitoquímicos que nos protegem de doenças e nos ajudam a viver melhor. E poder ser guardado seco durante meses e

Então, para que as pesquisas do IBGE não continuem acusando baixas no consumo, se é impraticável comer todos os dias o bom e caldoso feijão para acompanhar o arroz, ao menos vamos mantê-lo por perto com outros preparos. O doce e as empanadas de platano são bons exemplos do potencial que temos ao nosso alcance.
  

Como cozinhar para fazer o purê: lave bem o feijão, que pode ser rosinha, rajado, roxinho, canário, carioca, preto etc,  escorra, cubra com água fria na proporção de 1 litro para cada xícara,  e deixe de molho por cerca de 4 horas ou até que todos os grãos estejam hidratados, sem rugas. Pode ser deixado de molho um dia para outro, sem problemas com excesso de hidratação. Escorra a água do remolho, junte mais água - para que cubra os grãos, com folga de uns cinco centímetros acima da superfície, e coloque na panela de pressão. No caso do feijão preto, não despreze a água, para que ele fique mais escuro,  apenas complete com mais água.  Coloque em panela de pressão, tampe e leve ao fogo alto. Quando a válvula começar a chiar, abaixe o fogo e cozinhe por cerca de 20 minutos. Desligue o fogo, espere acabar a pressão e só então abra a panela.  Em panela comum,  a cocção pode levar de 1 a 2 horas dependendo da idade do grão. Deve-se acrescentar água quente à medida que for secando. Se os grãos estiverem bem macios, estão prontos. Se não, tampe a panela e cozinhe mais um pouco, juntando mais água quente se necessário.  Separe o caldo e passe os grãos por passador de legumes e depois na peneira. Ou passe direto pela  peneira, amassando com uma colher. O purê tem que ficar lisinho, sem pele. Se você cozinhar 250 g de feijão, vai obter cerca de 750 g de feijão cozido e 500 g de purê peneirado. Reserve o caldo para sopas e as fibras, para virado ou capitão.

Doce básico de feijão
2 xícaras ou cerca de 500 g de purê de feijão (250 g dos grãos crus devem render esta quantidade)
1 xícara (180 g) de açúcar
1 pitada de sal
Aromas*

Coloque o purê, o açúcar, o sal e os aromas numa panela, misture bem e leve ao fogo, mexendo devagar com colher de pau para não deixar pegar no fundo. Quando levantar a colher e os pingos ficarem marcados quando caírem na superfície, ou quando o doce começar a se soltar do fundo da panela,  está pronto (cerca de 20 minutos). Coloque em vidro aferventado e seco, tampe e guarde na geladeira por até duas semanas.  Sirva, se quiser, com creme de leite e gergelim preto torrado por cima.  Ou use como recheio.

*Variações de aromas

Feijão preto:  junte 2 dentes de cravo triturados e 1 colher (café) de canela em pó.


Feijão rajado: sementes socadas de três vagens de cardamomo e 1 colher (chá) de canela.


Feijão rosinha: 7 sementes de amburana (lembre-se de tirar com o doce pronto).


Feijão canário (bolinha ou amarelo): sementes de uma fava de baunilha


Opção para servir o doce:  com nata e gergelim preto torrado 




Empanada de banana-da-terra com recheio de doce de feijão preto


Lave 4 bananas-da-terra pequenas e maduras (ainda firmes), corte as extremidades e divida cada uma em 3 pedaços. Coloque-as em panela e cubra com água. Leve ao fogo e deixe cozinhar em fogo alto até que a casca se rompa. Se preferir, cozinhe a banana sem água por 3 minutos no microondas. Espere esfriar e descasque. Passe por processador ou peneira pra ficar um purê liso. Deve render 1 xícara. Deixe esfriar bem, separe o purê em 4 bolas e deixe na geladeira até gelar. Achate estas bolas entre duas folhas de plástico com o fundo de uma panela ou com prensa de tortilhas pressionando sem força, de modo que forme um círculo de 5 milímetros de espessura, mais ou menos. Retire a folha de plástico de cima e coloque no centro uma colherada de doce de feijão preto (para 1 xícara de purê de banana, vai precisar de cerca de meia xícara de doce). Dobre o pastel com a ajuda da outra folha de plástico, pressionando bem a emenda. Coloque um pouco de manteiga numa frigideira antiaderente e deixe dourar dos dois lados do pastel, retirando com espátula, com cuidado para não machucar. Se quiser, frite em óleo abundante como as tradicionais empanadas de platanos, mas não precisa, pois tanto a banana quanto o recheio já estão cozidos. Polvilhe com açúcar e canela.





Variação do pastel salgado: em vez de usar doce de feijão, use como recheio o purê temperado com refogado de alho, cebola e pimenta fritos em azeite. Jogue o purê sobre o refogado, tempere com sal e mexa. Se quiser, junte folhinhas de erva-de-santa-maria (epazote) e fatias de queijo fresco.




Para aproveitar o caldo do feijão, faça Sopa

Refogue 1 dente de alho picado, 1 colher (sopa) de bacon picado e 2 colheres (sopa) de cebola picada em 1 colher (sopa) de óleo e junte 1 litro de caldo de feijão. Tempere com sal, junte ½ xícara de macarrão padre-nosso e deixe cozinhar por cerca de 8 minutos. Junte salsinha picada, rodelas de pimenta dedo-de-moça e pimenta-do-reino.







Para aproveitar as fibras do feijão, faça Capitão

Numa frigideira, em fogo médio, frite 2 colheres (sopa) de bacon em 1 colher (sopa) de óleo. Junte 2 dentes de alho socados e 1 cebola pequena picada. Quando começar a dourar o refogado, acrescente 3 colheres (sopa) de cubinhos de pimentão de cores variadas e 1 pimenta dedo-de-moça picada (opcional). Misture e deixe amolecer. Acrescente 1 xícara de resíduo do feijão e mexa. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Junte ½ xícara de farinha de milho e misture bem. Se a mistura estiver muito seca, junte um pouco de água ou caldo de feijão. Deve formar uma farofa úmida que possa ser modelada. Retire porções e faça bolinhos com as mãos.


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