A partir da Uauá, na Bahia, fiz algumas visitas com a Jussara, da Coopercuc. Num desses passeios, fomos até Canudos, conhecer a propriedade do Seu Afonso, no Sítio do Tomaz, uma comunidade de agricultores familiares. Apesar da terra tórrida, aquela gente não desanima e nutre paixão pela caatinga.
Seu Afonso Almeida da Silva, de 60 anos, associado da cooperativa, vive ali cheio de sonhos que faz acontecer e tira da terra o sustento da família. Com o filho e a mulher tocam uma produção de mandacaru sem espinhos - ótima fonte de alimento para a criação de cabras -, desenvolvido pela Embrapa. Se o bicho come mandacaru e outras plantas não precisa ir cutucar a caatinga.
Além de servir de alimento animal, se bem que o fruto seja comestível também, o mandacaru que ele planta é vendido para a L´Occitane para fazer produtos, mas a quantidade tanto do que vende quando do que recebe em dinheiro é tão pouca, mas tão pouca, que é como uma gota no oceano. A quantidade vendida é mais ou menos a mesma coisa que trouxe de presente para plantar aqui. E pensar que seu Afonso sequer viu a cara dos produtos feitos com seu mandacaru. Pode não ter lá muito mandacaru da caatinga nos cremes e colônias da empresa francesa, mas pelo menos as embalagens são ricamente ilustradas por artistas brasileiros e tenho certeza que Seu Afonso ficaria feliz de receber da empresa um kit familiar - que sairia mais caro que a encomenda.
Além de mandacaru, hortaliças e maracujá da caatinga, há por ali também muito umbu e por isto a mini fábrica da Coopercuc para processar as frutas da comunidade. Com apoio do Slow Food.
O que tem de destaque na fazenda do seu Afonso é um banco de sementes comunitário que começou com incentivo do IRPA - Instituto Regional da Pequena Agropecuária, mas que ele agora toca sozinho. Ele cedeu o terreno, o instituto construiu uma instalação simples, os vizinhos ajudaram com cimento, areia e trabalho. O resultado é um quartinho coberto cheio de garrafas pet com sementes, coisa mais simples do mundo, mas que faz uma tremenda diferença naquela comunidade que não depende de sementes compradas, tratadas, com patentes. É semente que se multiplica, que gera vida, segurança e soberania alimentar.
Como funciona? É simples. Quando começou há uns cinco anos, Seu Afonso contava apenas com uma pequena quantidade de grãos doados pelo instituto: sorgo, feijão andu, milho etc. Ele foi plantando outras e aumentando aquelas, até que tivesse suficiente para doar aos vizinhos. A pessoa leva 200 g, por exemplo, e devolve um litro - são os juros que garantem a manutenção de um banco. Se leva 200 e devolve a mesma quantidade o banco não cresce e fica impossibilitado de atender a mais gente. À medida que devolve com juros, a pessoa pode levar mais. Claro, se o agricultor leva um tanto e não devolve, aí também é uma vez só, como acontece quando emprestamos livros. Não devolveu? não empresta mais. Felizmente, num banco de sementes comunitário, isto raramente acontece. É um bem comum que ninguém quer perder. Acontece, por exemplo, de a temporada da chuva adiantar - e na caatinga, quando chega a chuva, todo mundo corre pra plantar, porque sabe que a trovoada é passageira. Aí o sujeito tem que recorrer ao banco de sementes, pegar os grãos e plantar no mesmo dia. É um conforto para a comunidade. Segundo Seu Afonso, que hoje dispõe de bombonas cheias de milho crioulo, feijão de arranca (todo a planta é arrancada na hora de colher), feijão andu, forrageiras etc., tem gente que fica tão agradecida que em vez de devolver um vaso de feijão como pago pela pequena quantia, devolve logo um saco cheio. Perguntei se ele tem anotações, como num banco, ele disse que não. O controle é na palavra. E sementes de fora ele só aceita se for adaptada à caatinga e se for orgânica, como tudo ali é. Se uma semente deu certo ali, melhor não se atrapalhar com outra, ele diz. Mas doar, doa sempre a quem quiser plantar.
Então, fica aí a história do Seu Afonso como incentivo para quem acha que tudo nesta vida é tão difícil, tão complicado. Banco de sementes pode ser simples assim.
Umas fotos de lá:
A mini fábrica |
Apoio do Slow Food |
Seu Afonso e toda a sua fortuna |
Aqui, moradia de sementes. E da sanfona, que a gente não quer só comer |
Junto com a família |
Os bichos comem mandacaru |
Pode passar a mão que não tem espinho. Plantar mandacaru protege a caatinga da voracidade das cabras |
Não deu foco, mas juro que é um sapo cururu |
Dona Joana, Jonas e Jussara segurando maracujá da caatinga |